“Muito carro para pouca cidade”

Da série, Migrações

Uma notícia no jornal neste domingo: Frota de veículos em Salvador chega aos 700 mil. A consequência é um trânsito cada dia mais caótico e uma cidade cada vez mais planejada para quatro rodas, como se nós não tivéssemos pernas. Lembrei de duas crônicas que escrevi ano passado e que agora, também migram para cá.

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Seu Francisco está na praça há pouco mais de 30 anos, quase o tempo de vida da passageira que vai acomodada no banco de trás do táxi, comendo chocolates ferrero rocher. “Vai dar tempo de chegar em Ondina até 19h, seu Francisco?”. O taxista consulta o relógio, são 18h45, olha o tráfego engarrafado da avenida ACM, suspira e responde: “Se a gente conseguir sair daqui desse bolo, vai dar tempo sim, senhora”. O problema, continua Seu Francisco, é que tem muito carro e pouca cidade em Salvador. A moça concorda, mastigando um último pedaço de castanha, triturada e escondida entre as camadas de creme de avelã. Seu Francisco, dois filhos, “formados viu, minha senhora, um é analista de sistema e a menina é enfermeira”, 56 anos, “nascido e criado na Cidade Baixa”, casado com a mesma mulher há 39 anos, continua explicando os problemas do trânsito da terceira capital do país. “A senhora tá vendo essa sinaleira (na saída do shopping iguatemi, imediações do edifício Capemi) – essa sinaleira é uma burrice, minha senhora, eles botaram uma sinaleira na saída de um cruzamento, resultado, fecha lá, engarrafa aqui. Tinha era de botar uma passarela nessa avenida e eliminar a sinaleira”. É o ponto de vista do taxista, trinta e tantos anos na praça, cansado da guerra diária do trânsito. A moça dos chocolates divaga, imagina a cidade coalhada de passarelas, todas estendidas feito bandeirolas ou roupas coloridas ao vento, pedestres minúsculos feito formigas indo e vindo… Embaixo, pista livre para a disputa pessoal dos motoristas. Ganha quem tiver mais pressa, quem for mais hábil, quem tiver menos medo da morte. “Chegamos, senhora!”. São 19h05, Seu Francisco errou a previsão por pouco. “O total da corrida é R$ 17,75”. Nota de R$ 20,00. Seu Francisco cata moedas. “Arredonda logo para R$ 18,00, Seu Francisco”. Dois reais de troco, a passagem do ônibus de amanhã cedo. “Deus lhe acompanhe, minha filha”. Amém, Seu Francisco. E ao senhor não desampare.

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Faixa de pedestres?! E isso existe?

Imediações de uma faculdade, de manhã cedo, uma segunda-feira. Estudantes tentam atravessar a rua, um motorista apressado invade o sinal vermelho e quase atropela um grupo sobre a faixa de pedestres. Mesmo dia, algumas horas mais tarde, hora do rush em Salvador, imediações do maior shopping center da capital. Sinal fechado e… motorista apressadinho invade a faixa de pedestres. Bairro residencial da capital baiana, na porta de uma escola de ensino fundamental, mães e crianças tentam atravessar, um taxista para. O carro que vem atrás do taxista faz o quê? Ultrapassa o táxi e ainda xinga um grupo de mães e crianças que apenas tentavam chegar ao outro lado. Nos três casos, nenhum carro da Superintendência de Engenharia de Tráfego (atualmente Transalvador), nenhum guardinha para aplicar uma merecida multa nos motoristas psicopatas que não provocaram tragédias porque os pedestres, sempre em desvantagem, além do sol na cabeça, precisam manter também o juízo perfeito, a percepção afiada, o olhar atento e uma certa desconfiança do semáforo. Por mais que a maquininha teime em acender o bonequinho verde, os motoristas nunca percebem que o sinal está fechado para eles. Conclusão: Ou os pedestres de Salvador são daltônicos, ou daltônicos são os motoristas! A falta de civilidade no trânsito dessa cidade é notória e cresce na mesma progressão geométrica das multas aplicadas. Parece que quando mais chupa-cabras (radares) são colocados nas vias de grande movimento da cidade, mais revoltados os motoristas ficam e mais insanidades cometem no trânsito. Do contrário, que outra justificativa haveria para que alguém faça uma ultrapassagem perigosa na porta de uma escola onde estudam crianças dos três aos 10 anos? Que outra explicação haveria para que na entrada de uma faculdade, menos de três metros de distância de um ponto de ônibus e com uma sinaleira do tamanho do Farol da Barra, alguém invada a faixa branca pintada no chão? Desejo assassino? Pressa para não se atrasar para a consulta médica, a reunião no escritório? Alguém pelo amor de Deus ensine aos motoristas dessa cidade como é que se usa despertador, como se dirige de forma solidária e responsável e com quantas punições legítimas – e não multas geradas por chupa-cabras – se faz um condutor cidadão.

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