Resenha: A máquina de fazer espanhóis

A versão digital de A máquina de fazer espanhóis pode ser lida no Skeelo
Foto: Andreia Santana/@blogmardehistorias

A máquina de fazer espanhóis é uma perfeição de romance sobre a solidão do envelhecimento e os sentimentos de culpa que corroem os dias e podem se transmutar em corvos que assombram as noites, na fase mais frágil e desamparada da vida.

O livro conta a história de Antônio Jorge Silva, barbeiro aposentado de 84 anos, que vai morar no Lar da Feliz Idade depois da morte da esposa Laura. Ele é levado para a casa de repouso pelos filhos, contra a própria vontade e, no início, resiste a interagir com os outros internos, até que estabelece uma nova rotina marcada por banhos de sol no jardim, visitas ao túmulo da mulher e conversas pontuadas por muita nostalgia e digressões filosóficas.

A resignação de Antônio Silva diante da nova realidade é lenta e acontece na medida em que ele vai se deixando seduzir pelas histórias dos demais velhos do asilo. Um deles é o centenário Esteves ‘sem metafísica’, que alega ser o personagem no qual Fernando Pessoa se inspirou ao compor o poema Tabacaria, em 1928, sob o heterônimo Álvaro de Campos – [“Não sou nada/Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada/ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo…”].

O texto sensível de Valter Hugo Mãe apresenta o aspecto mais cru e perverso da velhice, sem tabus. A memória falha, as doenças, o abandono pelos familiares, a infantilização, como se os idosos não tivessem mais direito a uma voz e tomadas de decisão; o tom paternalista que médicos, enfermeiros e funcionários de asilo costumam usar quando lhes dirigem a palavra, as reprimendas como se todos tivessem voltado a ser criança, a revolta e até um ódio venenoso que se espalha pela alma, diante da perda da força física e da autonomia.

Ainda apaixonado pela esposa depois de 50 anos de vida em comum, o senhor Silva, como é chamado no lar por funcionários e companheiros, não consegue aceitar a partida de Laura, ao mesmo tempo em que deseja ardentemente juntar-se a ela. A história é narrada por ele, que alterna suas memórias da vida em família, sob a ditadura salazarista, e o cotidiano do asilo, no presente. É pela voz de Antônio que o leitor conhece as histórias dos demais moradores do Feliz Idade. Essa voz hora é travessa como a de uma criança, hora amargurada e melancólica.

Em meio a uma rotina entediante na casa de repouso, os velhos são divididos em duas alas. Do lado direito, com vista para o jardim, ficam os saudáveis; e do lado esquerdo, com a paisagem do cemitério, os acamados. Silva está convencido de que ao transferir os idosos para o setor dos doentes, o objetivo é matá-los a partir de uma máquina que tira a metafísica dos homens ou que transforma portugueses em espanhóis. Furtivamente, ele e os amigos costumam se esgueirar pelo corredor dos moribundos, convencidos de que algo sinistro ronda aqueles idosos inertes.

Nos banhos de sol – referência clara à rotina dos presídios, revelando a dupla prisão no confinamento do asilo e no próprio corpo que se deteriora -, os idosos recordam as décadas da ditadura e o quanto foram ou não ‘cúmplices’ do regime. Antônio Silva, insone e dado a pesadelos, é quem tem mais culpas a expiar e, internamente, se ressente das decisões que tomou e das que deixou de tomar, por covardia e acomodação, durante os anos mais difíceis do salazarismo.

Com exceção das desconfianças dos velhos com os médicos e tratamentos, e da mistura do medo da morte com o desejo de descanso eterno das labutas de suas vidas; além do ritmo lento que o tempo assume em uma casa de repouso, A máquina de fazer espanhóis é um livro sem grandes reviravoltas, mas cheio de significados.

É uma história muito mais de sentimentos que de ação. E nos leva a pensar na velhice sob a perspectiva dos próprios idosos. Se esse livro tem uma lição a ensinar, é a de que o envelhecimento sempre cobra a conta dos dias de juventude. Chegar à ‘feliz idade’ sem amarguras ou remorsos é uma dádiva que precisa ser construída décadas antes dos primeiros sinais de declínio…

Ficha Técnica:
A máquina de fazer espanhóis
Autor: Valter Hugo Mãe
Editora: Biblioteca Azul, 2016
264 páginas
R$ 55,92 (livro físico, Amazon), R$ 29,94 (e-book, Kindle) ou e-book disponível para assinantes do Skeelo

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*Lido para o desafio #50livrosate50anos, brincadeira que criei para comemorar meu aniversário. Em abril de 2024 eu faço 50 anos. A ideia é ler 50 livros até 30/04 e, se possível, resenhar ou fazer algum breve comentário aqui no blog e no Instagram, sobre cada um deles. A máquina de fazer espanhóis é o livro 45 do desafio. Faltam 05 para finalizar a leitura e postar.

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