Resenha: A cultura-mundo (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy)

“Cultura-mundo significa o fim da heterogeneidade tradicional da esfera cultural e a universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da vida social, dos modos de existência, da quase totalidade das atividades humanas. Com a cultura-mundo, dissemina-se em todo o globo a cultura da tecnociência, do mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo; e, com ela, uma infinidade de novos problemas que põem em jogo questões não só globais (ecologia, imigração, crise econômica, miséria do terceiro mundo, terrorismo…) mas também existenciais (identidade, crenças, crise dos sentidos, distúrbios da personalidade…). A cultura globalitária não é apenas um fato; é, ao mesmo tempo, um questionamento tão intenso quanto inquieto de si mesma…”

O intertítulo de A cultura-mundoresposta a uma sociedade desorientada – já entrega que essa é uma leitura para refletir sobre a condição humana na sociedade pós-moderna e hiperconectada. Os autores Gilles Lipovestsky (O império do efêmero) e Jean Serroy traçam um panorama social, político e cultural dos tempos atuais, em que “a cultura tornou-se um mundo cuja circunferência está em toda parte e o centro em parte alguma.”

Na visão de Lipovetsky e Serroy, vivemos tempos em que as rupturas e reconstruções caminham lado a lado e em que o entendimento tradicional do que seja cultura cede espaço à construção de uma “cultura-mundo” que se expande para além do território da “cultura cultivada humanista”. Trata-se de uma cultura ‘globalitária’ que reestrutura a relação da humanidade consigo mesma e com o planeta e que, ao mesmo tempo em que “reflete sobre o mundo, o constitui, engendra (gera), modela e faz evoluir”.

Nessa cultura-mundo proposta pelos autores, as estruturas sociais que garantiam um certo sossego emocional às pessoas, mesmo que a custa de menos liberdades individuais, já não existem ou passam por transformações profundas e dinâmicas, o que leva a inquietações e frustrações já que as regras mudam muito mais depressa do que muitas vezes somos capazes de acompanhar e nos adaptarmos.

Nesse mundo globalizado, pós-moderno, hiperconectado e com as pessoas tendo acesso ilimitado a inúmeras informações e modos de vida; embora o outro esteja próximo, à distância de apenas um clique, torna-se ainda mais estranho e por isso, causa medo. Um medo que muitas vezes é estimulado para atender determinados interesses de mercado. Uma vez que a globalização facilita a homogeneização cultural, as nações buscam enfatizar suas identidades próprias, no que isso tem de bom (preservar tradições, modos de fazer e heranças culturais) e de ruim (xenofobia, caça ao terror).

Essa ênfase numa identidade nacional peculiar, muitas vezes, não passa de artifício no jogo político, a velha estratégia do “dividir para conquistar”. Quanto mais exótico é o outro, menos me sinto inclinado a entendê-lo e a buscar um ponto de intersecção que abra o diálogo. E aqui a situação vale tanto para nações quanto para grupos sociais que lutam por direitos, onde muitas vezes acontecem dissidências e discussões que sugam a força do movimento, porque seus membros se apegam às diferenças como barreira de isolamento.

A obra de Lipovetsky e Serroy conversa com a de diversos outros autores que também refletem sobre a condição humana e o ‘mal do século’, sobre globalização, advento de novas tecnologias, o poder de criar ou destruir consciências atribuído à mídia e sobre as imposições do capitalismo e do neoliberalismo que transformam a humanidade em uma grande massa de consumidores ávidos tanto por bens materiais quanto por um novo sentido para a vida.

Ao ler a obra, e a depender das outras leituras prévias que se tenha ou das experiências culturais vividas, é possível traçar inúmeros paralelos com situações bem reais do cotidiano. Embora situe os exemplos na França, e não deixe de trazer algumas premissas civilizatórias europeias em relação ao resto do mundo, as análises dos dois autores cabem na atual conjuntura sociopolítica do Brasil, na eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos e nas ondas de radicalismo e renascimento de ideologias totalitárias que varrem o globo.

Na introdução da obra, eles afirmam: “O mundo hipermoderno está desorientado, inseguro, desestabilizado no cotidiano de maneira estrutural e crônica.”  Mais adiante, no primeiro capítulo – A cultura como mundo e como mercado – os dois estabelecem quatro eixos nos quais o mundo hipermodeno estaria estruturado: hipercapitalismo, hipertecnicização, hiperindividualismo e hiperconsumo.

Com o hipercapitalismo puxando a fila, os autores refletem sobre o advento de uma “cultura global de mercado” e fazem uma crítica bastante pertinente às relações de trabalho atuais e alguns efeitos como a solidão e a frustração. Nos demais capítulos, eles avançam na demonstração dos efeitos de uma vida sob a tutela da mercantilização, em que tudo é descartável e consumível, de alimentos a objetos, de arte a sentimentos, de marcas a celebridades instantâneas.

No entanto, embora bastante realista na análise, a obra não se pretende pessimista e no capítulo final traz sugestões do que seriam formas mais sensatas de viver os dias de hoje. Um retorno à sociedade pré-globalização, segundo os autores, seria praticamente impossível, mas manter esse ritmo marcado pela superficialidade, o imediatismo e o consumo autofágico também é insustentável a longo prazo.

Para Lipovestsky e Serroy há caminhos que podem ser tomados que permitam uma melhor adaptação à “cultura-mundo”,  por meio de caminhos que “estimulem as múltiplas potencialidades do indivíduo” na construção de uma sociedade mais equilibrada, justa, empática e solidária.

Ficha Técnica:

a-cultura-mundo-capaA cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada

Autores: Gilles Lipovestky e Jean Serroy

Tradução: Maria Lúcia Machado

Editora: Companhia das Letras

208 páginas

R$ 29,62 (pesquisa em 25/01/17 no site da Livraria Cultura)

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