Onde foram parar as lavadeiras?

*Da Série Migrações

– Não é saudade da exploração do trabalho escravo, não estou tentando dizer que lavar roupas é o sonho de toda menina e nem estou sendo machista. Pelo amor de Deus, não é nada disso, Fernando!

Por mais que Maria Júlia tentasse convencer o noivo, ele não entendia. A pergunta foi lançada ao acaso, durante uma daquelas tardes modorrentas de verão, quando a sombra de uma árvore vale mais que o ar condicionado do escritório onde os dois trabalhavam.

Uma pergunta que para ela era inofensiva, que remetia a uma saudade de infância, sem relação com opressão às mulheres ou lutas de classe, assim ela pensava.

Maria Júlia, deitada no colo do noivo, preguiçosa até para ter pensamentos mais simples, sem coragem de perguntar o que iriam comer no almoço ou decidir se naquele dia dormiriam na casa dele ou na dela, havia comentado: “Onde foram parar as lavadeiras? Você já reparou que não tem mais aquelas mulheres andando pelas ruas com trouxas na cabeça? Algumas enrolavam a trouxa lavada e passada em sacos plásticos, com medo da chuva, lembra Fernando?”.

Foi o que bastou para o noivo reagir com uma agressividade que Maria Júlia não conhecia e nem sequer imaginava. “Como é que é? Você sente saudades de ver aquelas pobres coitadas lutando para subir no ônibus? Equilibrando sabe-se lá quantos quilos de roupas sobre a cabeça, com as pernas cheias de varizes, o rosto marcado pelo sol… Porque eu não sei se você sabe dona Maria Júlia, que as lavadeiras lavavam a roupa na mão grande, no quintal de casa, e não na máquina de lavar, como a sua mãe…”

– E eu posso saber qual é a relação que a minha mãe e a máquina de lavar dela têm com a minha pergunta?

Os dois começaram a discutir, Maria Júlia levantou a cabeça do colo de Fernando, os olhos lançando faíscas de raiva e surpresa. Como ele tinha transformado uma pergunta tão boba em motivo de guerra de classes? Enquanto olhava o noivo, Maria Júlia lembrou da sensação que a invadiu naquela manhã. Acordou cedo como fazia todo dia, pouco depois das 5 horas. Ligou para Fernando, que teimava em fazer da noiva o seu despertador. O banho e o café foram rápidos. A preguiça era maior que o desejo de perder peso e a academia ficou para o dia seguinte.

Sem a musculação, sobrou tempo e Maria Júlia dispensou o ônibus, iria trabalhar a pé. Desceu a ladeira que separa o bairro onde morava, nem classe média alta, nem baixa. Um bairro como muitos na cidade, onde havia de tudo um pouco, casas antigas, prédios pequenos, escolas, salão de beleza, mercadinho. A especulação imobiliária ameaçava, mas não havia chegado no trecho onde Maria Júlia vivia com a família – mãe, pai, dois irmãos adolescentes e uma avó velhinha. Pracinha e igreja, coisa rara na paisagem da cidade, sobreviviam desafiadoras ao avanço dos edifícios de 15 andares.

A ladeira não era curta ou comprida. Também não era daquelas inclinadas. A cidade tinha fama por suas ladeiras que a dividiam em alta e baixa. Maria Júlia vivia na parte alta, mas a ladeira era confortável. Nos dias de sol e vento fresco, descer não era problema.

“Para baixo todo santo ajuda”- dizia dona Angélica, a avó.

De vez em quando, subir dava mais trabalho, não porque a ladeira fosse inclinada, era até sinuosa, tinha uma rotatória, no centro uma pracinha, com alguns bancos e um pé de amendoeira de sombra gentil. Subindo a ladeira um dia qualquer, Maria Júlia descobriu que precisava perder peso. Faltou fôlego:

“Nunca mais sorvete de chocolate depois do almoço!”

lavadeiras

No caminho para o serviço, na manhã anterior àquela da discussão com Fernando, Maria Júlia descia a ladeira com a cabeça cheia de pensamentos se atropelando. O ponto de ônibus ficava logo abaixo. Isso sempre acontecia. Bastava botar o pé na rua que lá vinham os pensamentos todos de uma vez. Ela tentava botar ordem, organizá-los em fila, mas todos vinham de vez, em algazarra, uma confusão de entontecer. Era uma mistura de coisas para resolver no trabalho, com lembranças das últimas fofocas da academia, embrulhadas com um trecho do livro que estava lendo e o ensaio de uma desculpa para dar ao professor porque ainda não havia escrito a resenha de Viva o Povo Brasileiro.

Para surpresa de Maria Júlia, a cabeça sempre viajante e conectada em tudo ao mesmo tempo, na manhã da briga amanheceu transparente feito água limpa. Seria algum milagre que, de um dia para o outro ela conseguisse pensar com tanta clareza? Enxergar o mundo com uma nitidez reveladora? Pensou em água, na pureza dos seus pensamentos e lembrou das lavadeiras. Viu cenas da infância, organizadas e em sequência, como em um filme. Dona Madalena chegando à porta de casa com a trouxa na cabeça e a filha pequena ao lado.

Maria Júlia brincou a infância toda com aquela menina, toda quinta-feira, dia que a lavadeira vinha trazer a trouxa da semana anterior e buscar a roupa suja, mas nunca soube o nome dela, nunca perguntou. A menina também não sabia como ela se chamava, era a filha da patroa de sua mãe e a filha de dona Madalena. Isso bastava.

As duas deviam ter uns 10 anos. Nas brincadeiras tinham nomes inventados, Maria Júlia era Rita de Cássia e a menina era Maria Aparecida. Fingiam que eram duas modelos famosas que desfilavam no rol, na frente da casa, um vão cimentado entre o portão e a porta da rua.

Lembrou de Madá e começou a pensar que nos últimos anos, a cena frequente da sua infância e adolescência, mulheres, trouxas, crianças, já não era assim tão comum. “Todo mundo tem máquina de lavar em casa”…

Na lagoa, famosa atração turística da cidade, ainda existiam lavadeiras até pouco tempo. Maria Júlia não andava por aqueles lados e não podia garantir que as mulheres que lavavam na lagoa ainda percorriam as ruas com trouxas e crianças atrás. No meio por onde ela circulava, no seu bairro, no caminho para o trabalho, na área central da capital, onde pagava contas e fazia compras, ela não via mais nenhuma.

A roupa que Madá trazia tinha um cheiro bom, mistura de sabão massa, capim e sol. Era diferente das peças cheirando a amaciante que saiam da máquina de lavar da família. A imagem das lavadeiras, misturadas com a infância de Maria Júlia, martelaram seus pensamentos durante a manhã no trabalho. Naquele dia, ela e Fernando iriam trabalhar apenas meio período, era véspera de feriadão, o dono do escritório de representações tinha planos de viajar com a família para o interior. Os funcionários foram liberados mais cedo. No final do expediente reduzido, veio o convite para que os dois fossem ao parque municipal. O dia estava quente, mas o parque era arborizado, gramado. Os dois poderiam ficar por ali, conversar, namorar e depois decidir o que fariam no feriadão.

Fernando e Maria Júlia se conheciam há dois anos. O encontro foi na fila de uma agência de empregos. Selecionavam moças que dominassem ao menos um idioma estrangeiro (inglês ou espanhol) para uma firma de representações comerciais. A mesma empresa precisava também de um profissional de informática para instalar programas de última geração e garantir a conexão da firma com seus clientes no Mercosul e União Europeia. Os dois ganharam as vagas.

Diziam-se noivos, embora não usassem aliança e não houvesse um pedido formal. “E alguém ainda faz pedido formal, minha mãe?” – respondia Maria Júlia cada vez que a mãe tocava no assunto.

Sentados na grama, agora um diante do outro, Fernando e Maria Júlia se olhavam como se nunca tivessem se visto antes. Ela ainda tentava entender como a sua pergunta sobre as lavadeiras havia descambado para aquela discussão sobre justiça social, racismo, falta de oportunidades e hábitos pequeno-burgueses.

E ele olhava para a noiva e o que via era uma cena distante, perdida no passado, que não fazia questão de lembrar e não dividia com ninguém: “Anda Fernando, pega a trouxa meu filho, lá vem o ônibus”.

*Publicado originalmente em 16/02/2008, no blog Estação de Sonho.

7 pensamentos sobre “Onde foram parar as lavadeiras?

  1. Pingback: Migrações pela rede | Mar de Histórias

  2. Muito interessante, moça. À princípio, talvez pelas constantes complicações quando se envolve sogra no meio das discussões, pensei que o mote fosse e me deixei ser surpreendido pelo final.

    Vou adicionar o teu blog ao meu.

    Beijos

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