Resenha: Planta Oração

Planta Oração pode ser lido na versão digital na Biblion.app
Foto: Andreia Santana/@blogmardehistorias

Planta oração fala diretamente às memórias da menina que apanhou na infância por quebrar as mangas dos candeeiros da avó com seu jeito desengonçado e sem coordenação motora de crescer e existir.

Sussurra para a outra menininha de 3 anos que, puxando a irmã de 5 pela mão, atravessa a rua na confiança cega da inocência, sem temer os carros ou possíveis sequestradores, só pelo prazer de, diante da avó muito braba com a traquinagem, estufar o peito e afirmar que veio sozinha porque sabe o caminho.

Planta oração tem o cheiro do quintal da casa da tia muito amada em dia de fogareiro aceso para assar milho verdinho e que estala na grelha. Tem também o cheiro do pelo do cachorro com nome de matemático [Newton], mas que ninguém sabia pronunciar e que assustava a mãe só por seu tamanho descomunal.

Tem, ainda, o brilho das fogueiras das viúvas em noite de São Pedro, com a fumaça das chuvinhas e o som das bombas e da porta sendo batida com a chave dentro, para desespero da menina destrambelhada e da tia que calculava o tamanho do prejuízo.

É um livro com a força dos braços ainda jovens dessa mesma tia, que de machado em punho, arrebentou a porta frágil do quintal para conseguir entrar de novo em casa, espantando para longe a possibilidade de uma noite ao relento.

A mistura de poemas, contos, cantigas e acalantos, com a trilha sonora do farfalhar das folhas das árvores mais antigas que o tempo, fere como as farpas do vidro da cristaleira quebrada, que entram na pele da criança largada descalça no meio dos estilhaços, e nunca mais saem.

Cicatriz de décadas, que só anuncia presença em noite de lua cheia, quando as lembranças da vida machucam mais ao recordar a infância com uma comichão fantasma na planta do pé.

O livro de estreia de Calila das Mercês, poeta e escritora baiana nascida em Berimbau (Conceição do Jacuípe), mesma cidade da outra avó, é um álbum de recordações para quem iniciou a vida nas periferias do mundo ou no subúrbio ferroviário de Salvador. E viu de perto a afetividade meio bruta, meio bullying, das mães da vizinhança, praguejando a cada vez que o colchão molhado pelos terrores noturnos precisava arejar ao sol.

Quando terminei de ler Planta oração, perguntei para minha irmã se tinha sido ela quem comentou primeiro comigo sobre o livro. Não foi. E tudo o que consegui dizer é o quanto a nossa família está em suas páginas.

Nossa família miscigenada, meio disfuncional, ora afeto, ora susto, ora surra, aconchegante em seu gosto do tempero do vatapá que ninguém nunca mais vai fazer igual ao da minha mãe; com a delícia do caruru de domingo da minha tia; com o melhor bolo de tapioca que nunca mais vou ganhar de aniversário; com a toalha de mesa estendida no chão da sala para fazer piquenique.

É como se Calila tivesse crescido na casa ao lado da nossa…

Ficha Técnica:
Planta Oração
Autora: Calila das Mercês
Editora: Nós, 2022
144 páginas
R$ 36,50 (livro físico, Amazon) e R$ 25,62 (Kindle). O livro também pode ser lido gratuitamente, em sua versão digital na Biblion.app

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