Tenho medo de você

As fotos são do filme Mulheres Perfeitas

Todo usurpador do poder tem medo de uma rebelião que o tire da posição de comando. A frase pode dar essa impressão, mas minha ideia não é falar de partidos, embora o tema tenha seu viés político. Trata-se, porém, não da política eleitoreira, mas daquela feita no cotidiano, nas negociações inerentes ao jogo social. Trata-se, em resumo, da necessidade de afirmação que ainda é preciso que nós mulheres adotemos, porque a verdade é que tivemos o poder usurpado e quem nos tirou esse poder, morre de medo de uma rebelião.

Três ganchos (em linguagem jornalística) me levam para essas reflexões: o primeiro, a Marcha das Vadias que aconteceu em Itabuna – interior da Bahia – no final de semana passado; o segundo, a minha desconfiança de que os homens (certos tipos de homens, não todos) temem as mulheres inteligentes; e o terceiro, o capítulo que li ontem à noite do livro de Clarissa Pinkola Estés (Mulheres que Correm com os Lobos), que falava justamente das mulheres que se submetem, seja aos relacionamentos frustrantes, às violências física, moral e/ou intelectual; ou ainda, que se conformam com o lugarzinho de sombra legado a elas pela cultura.

Antes de destrinchar cada um dos meus três ganchos, vale ressaltar que quando digo poder feminino usurpado, não estou falando do sexo feminino apenas, “o biológico”, falo do princípio feminino, da alma feminina, da ‘face feminina de Deus’ (para os místicos). Não só mulheres o possuem – e existem, inclusive, aquelas que não possuem,  não sabem se possuem ou que o perderam -. O poder do princípio feminino está também em seres do sexo masculino dotados de uma ‘sensibilidade feminina’. E aqui, mais uma vez, vale enfatizar que tanto faz a orientação sexual da pessoa ou o gênero com o qual ela se identifica. A questão aqui é mais de alma, transcende a prisão do corpo, lembrando a Judith Butler.

Em resumo, porque não tenho bagagem de leitura suficiente para entrar na discussão gênero x sexo ‘biológico’ x orientação sexual (mas juro que estou tentando ler o máximo possível sobre o assunto para aprender), o que quero dizer é o seguinte: Não são todos os homens (ou mulheres, também, sejam trans ou cis) que  1 – tem medo da inteligência feminina profunda (a inteligência da alma) e 2 – usurpam o poder desse princípio feminino (que agem como “predadores da psique feminina”, como diz Pinkola no seu livro). Um determinado tipo de homem (ou de mulher), mais uma vez tanto faz se trans ou cis, com um determinado padrão normativo de comportamento (obrigada, Leo Colling, pelas suas aulas esclarecedoras) é que age dessa forma.

Não sei se estou sendo clara no texto, mas estou aqui abertamente fazendo um exercício de compreensão. Pir isso, aceito contribuições e a caixa de comentários é de quem se sentir à vontade para “filosofar” sobre o assunto. Mas já sabem a regra do blog: moderação. Porque desrespeito não vale! Discordar da autora, com certeza é um direito seu, mas com educação. Não convido uma visita à minha casa para ser ofendida.

Aos ganchos agora. O primeiro: a Marcha das Vadias. Este ano, no cortejo do Dois de Julho (comemorações da Independência da Bahia), ocorreu uma em Salvador. No sábado, 08/10, foi a vez de Itabuna. O movimento foi iniciado no Canadá, ao menos era o que dizia a reportagem que li sobre o assunto, depois de um episódio parecido com o de Geisy Arruda (a garota que foi hostilizada em uma faculdade porque foi à aula de mini vestido). Um policial, numa palestra em uma escola de ensino médio, ou foi faculdade canadense (não tinha essa informação na matéria), recomendou que as moças se vestissem com decoro para não incitarem a violência. Grupos de defesa dos direitos das mulheres saíram às ruas para enfatizar aquilo que deveria ser inato (e óbvio), mas infelizmente não é:  que as mulheres tenham o controle sobre seus próprios corpos e vontades e que ao invés da vítima da violência ser acusada de ter “facilitado” a ação, tornando-se coresponsável, que o agressor é que seja educado para não invadir e tomar à força o corpo ou a vontade de uma mulher só porque ela está de minissaia! Uma coisa tão básica, não é? Mas bem sabemos todos os julgamentos morais “normativos” por trás da questão. Julgamentos esses que nem sempre saem da boca dos homens. E aqui é que Clarissa Pinkola, no seu livro, mostra a face cruel da coisa. Mulheres que, uma vez silenciadas no seu eu profundo, que foram forçadas ou subjugadas, que perderam o poder interno, se voltam contra outras mulheres, espalhando aos quatro ventos os preconceitos da sociedade, apontando o dedo e julgando as irmãs, na perversa tentativa: “se não posso mais ser livre, que ela também seja escrava”.

O segundo gancho agora. Não é nenhuma novidade, sempre penso muito na questão, e gente com mais cacife também já pensou. Percebo, observando casais conhecidos ou não, lendo sobre o assunto, com base em relacionamentos passados, meus ou de conhecidas, que os homens que seguem a cartilha normativa dos usurpadores do poder feminino morrem de medo de mulheres inteligentes. Mas não é qualquer inteligência que assusta, é a intuitiva, a das mulheres que mantém a chama acesa, daquelas que possuem sensibilidade para ver além da aparência ordinária das coisas. E você, leitora (leitor, leitorxs) se não passou pela experiência, conhece alguém que passou. O casal que briga horrores porque a posição da mulher no mercado de trabalho é superior ao do marido e ele se sente diminuído; o namorado que, ao perceber que a namorada é admirada e querida, ou que ela tem um brilho e sagacidade especiais, inicia um jogo perverso de depreciação constante dela; o pai que não estimula o intelecto de uma menina ávida por conhecimento, enquanto dá todas as oportunidades ao irmão dela; um homem que se apaixona por uma mulher, mas quando descobre o quanto ela é brilhante, decide se afastar sem nem tentar compreendê-la; a quantidade cada vez maior de mulheres independentes intelectual e financeiramente que estão sozinhas. Ah e tem aquelas que são sensatas o suficiente para não ficar só por ficar. Se não encontram aquele que lhes saiba ler a alma, seguem adiante. São muitos exemplos e vocês devem conhecer centenas de outros.

Por último, o terceiro gancho, que é na verdade o fio que costura tudo dito até agora, o livro de Clarissa Pinkola Estés. O capítulo que li ontem tratava de diversos aspectos sobre a forma como as mulheres se permitem aprisionar e subjugar, quando não estão fortalecidas na própria personalidade, quando perderam a conexão com a Mãe Selvagem, como diz a autora. E os mecanismos de controle vão desde o julgamento moral que nos divide em santas e vadias, até a ditadura imposta por padrões de beleza que elegem um tipo de corpo, um tipo de cabelo, uma determinada idade, um tipo de pele e uma única beleza como aquela aceita, descartando todas as outras belezas que a natureza criou.

Ao ler esse capítulo, lembrei de um artigo que escrevi no Carnaval de 2010, refletindo sobre as formas sutis de violência que atacam a autoestima e a dignidade femininas. Na época,  o gancho foi uma cena que vi em um trio elétrico, onde uma dançarina completamente nua fazia uma coreografia para uma letra que dizia “rala a xana no asfalto”; enquanto embaixo do trio, foliões e foliãs jogavam latas, assobiavam, diziam ofensas, apontavam o dedo. Lembro, na ocasião, que um colega refutou minha teoria de violência praticada contra a dignidade feminina, dizendo que ao se expor sobre o trio, a dançarina estava justamente dando vazão à uma sexualidade plena e que ela tinha o direito de dançar nua se bem assim entendesse. Rebati, porque a questão era outra.

A sexualidade feminina sempre assustou por conta dos seus mistérios e múltiplas possibilidades. Uma mulher tem todo o direito de andar nua, ou vestida com roupas curtas, ou coberta dos pés à cabeça; de namorar um ou dez, ou morrer virgem; de correr atrás do cara por quem está interessada ou deixar-se  ser cortejada; de ser livre para exercer a sua libido. Mas essa liberdade só existe de fato se ela respeita seus ciclos naturais e pessoais. E, principalmente, se for respeitada dentro deles e nas suas escolhas. Do contrário, é violência. Ser forçada a bancar a gostosa porque a mídia impõe esse padrão, é violência. Ser forçada a conter a própria natureza exuberante porque a religião diz que mulher série não é exibida, é violência; ser forçada a dar para o namorado só para que ele não vá procurar outra que facilite mais, é violência. Vocês, acredito, também conhecem centenas de outros exemplos de violências sutis contra a feminilidade.

Não consigo deixar de pensar em quantos mecanismos de controle das mulheres ainda existem neste mundo em que tentam nos fazer crer que a liberdade sexual, profissional e intelectual foi finalmente conquistada. É Pinkola quem diz mais uma vez, citando uma amiga militante do movimento feminista: “é preciso lutar de novo pela liberdade a cada vinte anos”. Ou seja, a cada nova geração. Quando olho para as adolescentes de hoje em dia, todas destilando preconceitos ou atitudes pseudo livres aprendidas em revistinhas duvidosas, não deixo de concordar. Nunca fomos tão prisioneiras do julgamento da sociedade, da opinião masculina sobre nós, da opinião de outras mulheres, da indústria da beleza e seus muitos mitos de fumaça. As revistinhas duvidosas vendem uma sexualidade que em nada tem relação com a mística do corpo e da libido feminina; vendem uma super mulher que dá conta de todas as tarefas e mais um pouco e que ainda estampa o sorrisão e a make perfeita, mas a realidade não é tão cor-de-rosa, o padrão é o de uma Barbie com o cérebro de Napoleão, cruzes! Impõem padrões de comportamento e beleza que só servem para acirrar o sentimento de inferioridade em quem é pega desprevenida e se deixa seduzir por esse canto do cisne.

Certas revistinhas – e não só elas, existem diversos outros meios (tv, igreja, família, vizinhança) – são o mecanismo de controle perfeito, porque vendem as mesmas amélias de antigamente, mas disfarçadas de mulher maravilha.  Metemos medo e por isso é preciso vigilância permanente. É preciso criar distrações para que as mulheres não tenham nem tempo de pensar na questão e para que continuem na ilusão de liberdade, enquanto a rede se fecha cada vez mais sobre elas. O número de mulheres com depressão está aí para sinalizar que algo não está funcionando como deveria.

As que têm lucidez suficiente para enxergar além da aparência ordinária das coisas são as que mais metem medo. E são também as menos cotadas para esposinha perfeita, para padrão de comportamento feminino. Que todas sejamos livradas de nos tornar um padrão, porque praga maior não há. Mas não desista, se por acaso é uma dessas. Existem outras como você e se a cada vinte anos temos de lutar de novo e de novo, pegue suas armas e entre em campo. Queimar sutiãs a uma altura dessas do campeonato, não é ambientalmente sustentável, mas há outros meios. Comece por exemplo, não escondendo a sua beleza, mesmo que ela não seja o padrão vendido como único aceitável; e nem disfarce a inteligência sagaz, instintiva e profunda que inspira sua alma. E quem não aguentar seu brilho natural e selvagem, que compre um par de óculos escuros!

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