In memoriam: Os 50 anos de Psicose IV

Eis o último trecho da análise sobre Psicose, retirado do meu trabalho de graduação, escrito 12 anos atrás. Por causa da homenagem a Saramago, não publiquei ontem, pulando um dia na série…

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Leia  os outros trechos da análise:

>>In memoriam: Os 50 anos de Psicose I

>>In memoriam: Os 50 anos de Psicose II

>>In Memoriam: Os 50 anos de Psicose III

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Psicose: O assassinato como obra de arte (final)

Com Psicose, Hitchcock trabalha a transferência de culpa e mexe com os valores da sua plateia. Cúmplices no roubo de Marion Crane, somos redimidos por seu arrependimento e quando nos preparamos para assumir nosso erro, surge em cena um assassino que revela-se um doente e do qual ao invés de termos ódio, temos pena. Nos tornamos cúmplices de seu crime e de sua obsessão e apagamos com ele os vestígios da morte violenta de Marion e do detetive contratado por sua irmã Lila. Arborgast, o detetive, começa a investigar o motel Bates e, ao mesmo tempo que torcemos para que ele encontre o culpado, a mãe de Norman, tememos pelo destino do filho. A morte do detetive, pelo mesmo vulto vestido de negro que matou Marion, e a cena em que Norman leva a mãe nos braços até o porão, nos aliviam num certo ponto e deixa apreensivos em outro. Psicose não tem um bandido de carne e osso para projetarmos nossa raiva. Os crimes são cometidos por um fantasma, e, contra fantasmas a lei e a justiça de Arborgast nada podem fazer.

A descoberta da verdade (de que desconfiamos e que tentamos esconder), por Lila e pelo namorado de Marion, tem uma das sequências de suspense de tirar o fôlego na trama: a casa dos Bates é exibida num plano geral, com o desconfortável contra-plongée. A câmera vai se aproximando lentamente num travelling para a frente, antecedendo os vacilantes passos de Lila. Num plano médio, ela alcança a porta e sua mão está em close no momento em que a abre. A escada que conduz aos quartos surge em sua frente e a câmera segue-a enquanto sobe degrau por degrau. Ao abrir a porta do quarto da senhora Bates, a câmera entra primeiro para mostrá-lo vazio e intocado, como se não fosse usado há muitos anos. Lila abre o closet e encontra as roupas, a câmera vai até a cômoda e um porta joias tão sinistro quanto o quarto é mostrado em close. Um susto com o próprio reflexo no espelho e Lila decide abandonar o quarto e subir outra escada. Esta conduz ao quarto de Norman, que ainda preserva uma decoração infantil.

Ela investiga os cantos do quarto e descobre livros sobre taxidermia (ciência que estuda a anatomia das espécies), e um disco com a Heróica de Bethoveen na vitrola. Não encontra nada suspeito e sai do quarto, se preparando para descer. Um corte e Norman Bates se aproxima da casa. Ela desce. Está escondida embaixo da escada quando Norman irrompe pela porta e sobe em direção ao quarto da mãe. A câmera conduz o olhar de Lila até a porta do porão. Ela desce, abre a porta do porão e um plano geral mostra uma mulher sentada, de costas; um corte e a lâmpada do porão aparece focalizada em close, e a mão de Lila toca os ombros da mulher, virando-a em sua direção. Close up em sua expressão apavorada e o grito que emite é da mesma intensidade que aquele que sai da garganta do espectador. O rosto da Sra Bates, ou o que restou dele, revela a condição de múmia embalsamada pela obsessão do filho. Mais uma vez um corte para a lâmpada, um recurso que Hitchcock usou para aliviar o desconforto (na época) provocado pelo surgimento da caveira da Sra Bates e para aumentar a tensão do que ocorre após a aterrorizante descoberta. Um corte e o vulto vestido de negro entra pela porta com a faca em posição de ataque. Samuels, o namorado de Marion, surge no último minuto para desmascarar o verdadeiro autor dos crimes.

“Minha principal satisfação é que o filme agiu sobre o público, e essa é a coisa a que eu me agarrava muito durante a produção. Em Psicose o assunto me importa pouco, os personagens me importam pouco; o que me importa é a junção dos trechos do filme, a fotografia,  a trilha sonora, e tudo aquilo que é puramente técnico, e que pode fazer o público urrar. Creio que é uma grande satisfação para nós utilizar a arte cinematográfica para criar uma emoção de massa, e com Psicose cumpri isso. Não foi uma grande interpretação que transtornou o público, não foi um romance muito apreciado que o cativou, o que o comoveu foi o filme puro”, afirmaria Alfred Hitchcock sobre sua obra-prima, calando as interpretações metafóricas e psicológicas atribuídas a Psicose.

Na verdade, o filme coroa a obsessão particular do mestre: usar os recursos da linguagem cinematográfica para conseguir efeitos que nem o mais lacrimoso drama ou a mais empolgante aventura conseguem sozinhas junto ao espectador.

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