Resenha: Memorial do Convento

Estava lendo Memorial do Convento quando José Saramago morreu, no mês passado. Hoje, consegui resenhar a obra. Espero que gostem!

O amor nos tempos de Saramago

Padre Bartolomeu de Gusmão, em representação de Benedito Calixto

Memorial do Convento, de José Saramago, me lembra Cem Anos de Solidão (Gabriel Garcia Marques). Não porque as histórias sejam parecidas. Muito menos pelo estilo dos dois autores, que são bem diferentes (ambos inimitáveis e maravilhosos). Mas apenas por lançar mão de recursos narrativos que remetem ao Dom Quixote, de Cervantes. Comparo os três livros porque leio Memorial como uma fabulosa novela de cavalaria ambientada no Portugal do século XVIII, com sua fé católica fanática (Inquisição) tão sangrenta quanto as touradas nas ruas de Lisboa, no período.

Cem Anos de Solidão, apenas para esclarecer a comparação, seria uma novela de cavalaria (ou uma epopeia quixotesca) que a partir da saga de uma família (os Buendía) reproduz a história colombiana, e por tabela, a latino-americana, de fortes laços com a Península Ibérica (Portugal-Espanha) de Saramago.

Pego emprestado, porém, o nome de outra obra de GGM (O Amor nos Tempos do Cólera) para titular essa tentativa de resenha para Memorial do Convento. Pois para mim, trata-se de uma história de amor, que pensando bem, me remete a outro autor, desta vez brasileiro, Ariano Suassuna (O auto da compadecida, Romance da Pedra do Reino), assumidamente um Quixote da cultura popular nordestina.

A saga de Balthasar Mateus Sete Sóis e de Blimunda “Sete Luas”, sua inquietante companheira, figura, ao menos para mim, como um dos romances mais bem construídos, delicados e comoventes da literatura. A presença do padre Bartolomeu de Gusmão (figura real da história, com origem no recôncavo baiano), como coadjuvante dessa aventura de um homem e uma mulher em suas andanças pelo mundo, torna o livro uma das obras-primas não do autor português, porque dele é difícil enumerar as obras-primas, todas merecem o título, mas da literatura contemporânea. Sem dúvida, para habitar ao lado de Dom Quixote no panteão dos clássicos inesquecíveis.

Memorial do Convento tem alicerces em fatos reais, mas fala dos impossíveis sonhos humanos. A construção do faraônico convento de Mafra a mando de D. João, “o quinto de seu nome na linha sucessória”, e as experiências igualmente reais com a “passarola” (máquina de voar), construída pelo padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, o Ícaro do Recôncavo, são a metáfora do autor para o seu tema favorito: o ser humano e suas paixões, motivações, medos…

D. João V, rei de Portugal

O visionário religioso, que questiona Deus e a fé ao mesmo tempo em que repele a ignorância, quer alcançar o céu com um objeto mais pesado que o ar em pleno século XVIII. Enquanto o rei almeja cair nas boas graças divinas (e com isso conseguir um herdeiro), por meio de um templo grandioso, erguido a custa do sangue de milhares de trabalhadores. E aqui o lado politizado do autor interpõem-se ao do romântico (à moda de Quixote) novelista.

Balthasar e Blimunda, convertidos em ajudantes na construção da passarola e em operário (ele) na obra do convento, habitam esse mundo arcaico (o Portugal das procissões, autos de fé e penitências), mas com ideias e visões de um mundo futuro que a principio parece irreal (onde homens voadores são capazes de competir com Deus na criação). Inocentes, os dois são como anjos sem asas, ou como deveriam ter sido o Adão e Eva do começo dos tempos, sem a culpa do pecado original.

Na base dos sonhos de grandeza do padre e do rei, ou dos sonhos de amor dos sempre leais Balthasar e Blimunda, gravita toda uma arraia miúda que nas obras de Saramago assume a cena como protagonista. A capacidade do autor de dar voz a personagens simples, tornando a rudeza do homem do campo em poesia, é proporcional à sua capacidade de criar diálogos filosóficos de grande profundidade e beleza.

Só um autor como José Saramago consegue a proeza de tornar um rei em coadjuvante de uma história de amor entre uma mulher capaz de enxergar as pessoas por dentro e de um soldado maneta em busca de apaziguar o coração cansado de guerra.

O Portugal barroco, a obra do convento de Mafra, a vida indolente da corte, e a loucura (genialidade?!) de Bartolomeu de Gusmão são o cenário do grande palco da vida onde o casal protagonista passeia e encena seu drama. Memorial do Convento me lembra um cordel, consigo até ouvir a voz cadenciada de um cordelista contando “a história do amor da encantadora feiticeira de Lisboa com o soldado de Mafra”. Daí a referência a Suassuna.

A cumplicidade entre Balthasar e Blimunda, como homem e mulher e como seres humanos, é uma utopia só possível nos livros. Mas, uma vez chegando ao final da obra, fica uma esperança mínima, lá no fundo da alma (ou da vontade humana, como bem nomeia o padre Bartolomeu) de que todas as histórias de amor sejam eternas não como a de Romeu e Julieta, mas como essa do sol e da lua.

12 pensamentos sobre “Resenha: Memorial do Convento

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  5. Gostei muito de sua resenha. Eu terminei Memorial do Convento na semana passada e até agora estou em estado de choque, pois eu nunca havia lido um Saramago e ele realmente foi um gênio.

    A história de amor entre Baltasar e Blimunda é realmente divina e a historia perderia toda a graça sem o casal. Eu vi uma versão americana desse livro e a “tradução” do título ficou “Baltasar e Blimunda”. Achei interessante.

    Um beijo e parabéns pelo seu blog, é de muita qualidade. ;)

  6. Andreia, muito boa a resenha. Tenho esse livro, mas ainda não o li. Vou fazê-lo rapidinho… Saramago e Gabriel G. Marquez são geniais, concordo inteiramente. Abraços.

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