Resenha: O Caderno

Saudades do Saramago blogueiro

Um ritual diário, a partir de setembro de 2008 até enquanto o autor estava vivo e mantinha a página atualizada (José Saramago morreu em junho de 2010), era acessar Outros Cadernos de Saramago, o blog que ele começou a escrever já octogenário.

Ler O Caderno (Companhia das Letras, 2009), me fez reviver esse mesmo encanto de constatar que o autor, além de brilhante, era um cronista inspirado, irônico, bem-humorado e, ao mesmo tempo, sério, comprometido, disposto a compartilhar seus exercícios de humanismo e livre pensamento.

Gosto bastante dessa coleção que combina Saramago e Arthur Piza
(Foto: Andreia Santana/Blog Mar de Histórias)

O Caderno reúne algumas das crônicas que ele postou no blog e que versam sobre o seu cotidiano de escritor – incluindo a emoção de assistir à adaptação de Ensaio sobre a Cegueira para o cinema e os eventos literários de que participava – e sobre o mundo, os sentimentos, as pessoas, a conjuntura histórica e social da época em que ele escrevia e das décadas de vida que acumulava.

Atento, atualizado, sensível às questões globais, crítico, reflexivo, cirúrgico e preciso, ele nos dá um recorte da crise econômica mundial de 2008 e também não se furta em comentar sobre homens públicos que abominava porque faziam necropolítica*, a exemplo de George W. Bush (então presidente dos Estados Unidos) e Silvio Berlusconi (o então primeiro-ministro da Itália).

Os textos de O Caderno respeitam as versões tal qual foram postadas no blog, originalmente, o que torna a leitura bem ágil. Para quem acompanhava a página, hospedada no site da Fundação José Saramago, é uma grata surpresa testar a memória e relembrar a leitura prévia, percebendo ainda se o impacto, mais de 10 anos depois, permanece o mesmo. Ou já sabendo respostas para situações que naquela época apenas se desenhavam como possibilidade de futuro tanto bom, quanto ruim.

As pistas da evolução e dos retrocessos da humanidade estão aí, sempre estiveram, e pessoas como Saramago sempre as souberam ler com clareza.

Os textos são uma mistura de crônica cotidiana com diário digital. Saramago não está interessado em exibir erudição, embora em uma única página nos dê bastante material no que pensar; mas em conversar como se estivesse em uma roda de amigos, como se escrevesse apenas para os olhos mais íntimos. Estabelecendo assim, uma intimidade com os leitores como se nós é que fossemos esses amigos tomando vinho em sua sala de estar e escutando-o, maravilhados.

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*A palavra é: Necropolítica – É um conceito filosófico desenvolvido pelo intelectual Achille Mbembe, de Camarões (África), para explicar o uso do poder político para decretar como as pessoas podem viver ou morrer, a partir de uma distribuição desigual das oportunidades de vida, incluindo aí as educacionais, adotado pelo sistema capitalista atual. A necropolítica está firmemente pautada não só na exploração dos mais pobres, como também no racismo e na xenofobia, para definir, inclusive, quem deve formar essa massa de excluídos.

Outros livros de Saramago resenhados no blog:

>>Claraboia

>>Alabardas, alabardas…

>>As pequenas memórias

>>A viagem do Elefante e Caim

>>Memorial do Convento

O exemplar que eu li:

Comprei para integrar minha coleção de obras de José Saramago – tenho 16 livros físicos do autor, mais os dois volumes de Os Cadernos de Lanzaroti em e-book. Mas, ao todo, já li 21 das suas obras (uma parte dos lidos é do acervo da minha irmã). Meu exemplar é a edição de 2009 e faz parte daquela coleção da Companhia das Letras que tem as capas com reproduções das pinturas e colagens do artista plástico Arthur Piza. Nas versões recentes, publicadas de 2018 para cá, as capinhas são coloridas e de design bem clean, com os nomes dos livros escritos na caligrafia de autores como Milton Hatoum e Valter Hugo Mãe. Embora ache a homenagem bacana, prefiro a coleção com as capas de Piza.

Ficha Técnica:
O caderno
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras (2009)
224 páginas
R$ 59,90 (site da editora), 33,49 (Amazon) e 33,48 (Submarino e Americanas)
*Pesquisado em 21/07/2022
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