Claraboia é um livro póstumo, mas foi escrito no começo da carreira literária de José Saramago. Concluído em 1953, é o segundo romance do autor, escrito logo após o lançamento da sua obra de estreia, Terra do Pecado (1947). O livro ficou perdido por décadas, após um editor recusar publicá-lo e sequer responder ao autor ou devolver-lhe os originais. Quando Saramago consagrou-se, nos anos 1980, com os romances Levantado do Chão e Memorial do Convento (este último, na minha modesta opinião, sua obra-prima), foi procurado para a publicação de Claraboia, mas respondeu que enquanto vivesse, o livro não seria publicado. O lançamento aconteceu em 2011, um ano após a morte dele, em junho de 2010.
Claraboia é um Saramago atípico para quem conhece a produção da maturidade do autor. O estilo inconfundível de narrativa, com longas digressões filosóficas e o sistema de pontuação peculiar, privilegiando vírgulas ao invés de pontos, não existe aqui. Mas há um vislumbre, uma semente de vir a ser. São os primeiros passos do autor que ele se tornaria no futuro. É lindo! Porque se em Alabardas, Alabardas…, outra obra póstuma e a última que ele escreveu e deixou inconclusa, vemos detalhes do seu processo criativo após décadas de experiência; nesse quase recém-nascido Saramago de Claraboia, percebemos o florescer de um grande talento não só da escrita, mas do humanismo.
Ambientado em um prédio de apartamentos de classe média baixa, na Lisboa de 1952, Claraboia apresenta diversos dramas pessoais e familiares. O edifício é o fio que une as histórias particulares e coletivas de seus moradores. Tudo de interessante se passa nesse microcosmo. Para fora do edifício existe a cidade e as rotinas de cada morador, como ir ao trabalho, à escola, à mercearia; mas elas são apresentadas de forma difusa, de propósito, porque o que interessa é mostrar-lhes a vidinha cotidiana e as mesquinharias guardadas entre as quatro paredes de casa.
As digressões filosóficas aqui aparecem em forma de diálogos entre os personagens Silvestre e Abel, moço misterioso que aluga um quarto no apartamento onde o velho sapateiro vive com a mulher Mariana. As longas conversas dos dois revelam um Saramago já familiarizado com as lutas operárias e com a rotina dos trabalhadores pobres. O próprio autor foi serralheiro mecânico, não cursou o ensino superior, apenas escola técnica, mas era leitor ávido e frequentava diversas bibliotecas, onde formou seu pensamento crítico e as convicções políticas e sociais.
Silvestre é uma espécie de alter-ego mais velho do autor (Saramago estava com 31 anos quando concluiu Claraboia), que coloca na boca do sapateiro as suas ideias sobre a humanidade. Mas é também uma das muitas recriações do avô Jerônimo, figura icônica na vida e na formação do jovem José. Quando o escritor recebeu o Nobel de Literatura, em 1998, iniciou seu discurso de agradecimento louvando o avô. Ficou célebre o trecho inicial, em que ele diz que o homem mais sábio que conheceu, ‘não sabia ler nem escrever’, referindo-se a Jerônimo.
Os outros moradores do edifício são: a bela e sedutora Lídia, que por seu estilo de vida livre e por ser sustentada pelo amante Paulino Morais, enfrenta os julgamentos velados da vizinhança; as costureiras Adriana e Isaura, as sonhadoras irmãs solteiras que vivem com a mãe Cândida e a severa tia Amélia; o caixeiro viajante Emílio e a esposa Cármen, espanhola da Galícia, junto com o filho deles de seis anos, Henriquinho; o linotipista Caetano e a mulher Justina, em luto fechado após a morte da única filha; e, por fim, o empregado do comércio Anselmo, com a mulher Rosália e a filha Claudinha, que é fascinada pelo glamour da vida da vizinha do andar de cima, Lídia.
As mágoas e ressentimentos dos personagens entre si e pelos vizinhos, o que faz com que alguns deles tenham atitudes eticamente condenáveis, demonstram a crítica social incutida nas páginas de Claraboia. Os anos 1950 e seus muitos tabus sexuais e sociais, são representados nesse microcosmo do edifício, com seus moradores cheios de preconceitos e do conservadorismo típico da cultura do período, seja na histórica Lisboa, no Brasil colonizado pelos portugueses ou nos Estados Unidos do american way of life.
Ler Claraboia é como transpor para a Europa do pós-II Guerra aquele cenário das donas de casa entediadas e fofoqueiras, com seus maridos hipócritas e metidos a baluartes da moral e dos bons costumes, que vemos tão bem representados nos filmes de época. No entanto, embora seja a crônica de uma geração, muito do que o livro mostra, principalmente sobre o provincianismo da classe média mundo afora, persiste nesse avançar do século XXI.
Como as demais obras de José Saramago, Claraboia, com seus 64 anos, não envelhecerá enquanto a humanidade, lamentavelmente, for do jeito que é!
>>Leia trecho do livro no site da Companhia das Letras (arquivo em PDF)
Ficha Técnica:
Autor: José Saramago
Editora Companhia das Letras
384 páginas
R$ 57,90 livro e R$ 32,00 e-book (Pesquisa em 09/05/17 no site da editora)
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Eu adoro ler, recentemente ganhei um livro de José Saramago; Clarabóia e estou amando o livro…
Oi Livia, Saramago é um dos meus autores preferidos. E Claraboia é um ótimo livro. Abraços