Resenha: Sapiens (Yuval Noah Harari)

Sapiens – uma breve história da humanidade, embora traga ‘breve’ no nome, não significa superficialidade no relato. O que menos importa é cada fato em si, registrado ao longo da História, mas todo o contexto social, cultural, biológico e ambiental que fez da humanidade o que ela é e fez a História evoluir pelos caminhos que conhecemos.

Por isso, o livro é menos enciclopédico e mais filosófico. Menos tratado de História pragmático e mais um chamado à reflexão coletiva sobre os efeitos que moldam a História. Didático, sim. Mas de maneira nenhuma pedante. Yuval Noah Harari, embora tenha bastante erudição, cria uma narrativa palatável e que segue a tradição dos mitos antigos que eram passados de geração a geração: simplicidade, fácil compreensão, doses equilibradas de drama, comédia e ironia para cativar o interesse; além daquelas questões éticas que fazem a audiência pensar.

Em determinados trechos, é nítida a sensação de que o autor conversa com o leitor com uma intimidade só possível na origem tribal em comum de toda a humanidade. E essa conversa franca – e, de vez em quando, meio sarcástica – permite inclusive que ele realize exercícios socráticos.

Embora esclareça diversas passagens da vida humana na Terra, ajudando a compreender porque somos do jeito que somos e porque a História se desenvolveu da forma que se desenvolveu, o livro traz mais questionamentos do que respostas prontas, seguindo o caminho da filosofia de sempre cavar um pouco mais fundo na investigação e analisar cada situação por todos os ângulos possíveis.

Harari aponta para onde a humanidade está indo, mas sem a pretensão de adivinhar o futuro. Até porque, os 70 mil anos de domínio do homo sapiens no planeta já mostraram que nem sempre nossa espécie está no controle de tudo da forma que acredita que esteja e que, em boa parte das vezes, é necessário uma grande dose de adaptação nas mudanças abruptas que ocorrem.

O autor puxa o leitor para dentro dos milênios da experiência da humanidade na Terra e o torna cúmplice da trajetória construída por esse primata que nem era o mais especial dentre todos os animais do planeta. Mas que, de causalidade em causalidade, acabou dominando o mundo e as outras espécies.

Lançando mão de descobertas arqueológicas, teorias comprovadas e outras ainda sob estudo, Harari nos conta sobre a aurora dos tempos e o aparecimento das espécies humanas. Sim, no começo, o homo sapiens era apenas uma de muitas, junto com os sapiens coexistiram ao menos mais cinco espécies de humanos, enumera o escritor.

Neandertais e outros grupos dominavam determinados locais só até a chegada dos sapiens, que embora sejam criaturas que em 70 mil anos realizaram maravilhas, também causaram diversos danos não só aos parentes humanos, como também à biodiversidade do planeta.

Herança ancestral

Presos ao passado, mas sempre ansiando pelo futuro, os sapiens trazem no DNA diversas lições marcadas em seus corpos por milênios. E, talvez, especula Harari, essa herança ancestral seja a explicação mais plausível para o fato de que os poucos séculos de revolução industrial e a juventude de décadas da revolução tecnológica ainda não tenham conseguido diminuir nossa angústia quanto a fragilidade de nossas vidinhas mortais.

Cientistas prometem e dizem que extinguir a morte é questão de tempo, mas a verdade é que ainda somos criaturinhas débeis que constroem castelos de cartas, porque basta um tsunami mais furioso e milhares de nós são varridos do mapa da existência.

E quando a natureza não dá cabo dos humanos, nos autodestruímos e/ou destruímos uns aos outros, porque nossa espécie inventou a guerra para muito além da disputa selvagem por abrigo e comida. Criamos a guerra e as máquinas de extermínio em massa na mesma proporção em que descobrimos remédios para curar doenças simples que até a Idade Média ceifaram milhares de vidas.

Biologia não é prisão

Mesmo que nosso DNA traga heranças determinadas pela nossa experiência de milênios como caçadores-coletores que habitavam cavernas, Yuval Noah Harari, ao revisar a história do homo sapiens, lança um olhar crítico sobre muitas das ‘verdades’ vendidas como ‘leis naturais’ e, assim, cutuca os preconceitos que nossa espécie dissemina e que o autor atribui a interpretações equivocadas do que seja a natureza e a própria biologia.

Assim, ele nos lembra que enquanto a biologia aceita uma infinidade muito maior de arranjos sociais e sexuais, os humanos tendem a interpretá-la não à luz de fatos científicos, mas com base em tabus religiosos. E também olha com bastante criticidade para o advento das religiões e das narrativas que elas construíram e que, em boa parte da História, serviu apenas para manter os privilégios de determinados grupos e exercer o controle social de quem, nos últimos dois milênios de herança judaico-cristã, não nasceu entre os privilegiados.

Com base em evidências e no exercício do pensamento lógico, o autor desconstrói, por exemplo, os mitos sobre uma suposta superioridade masculina e inferioridade feminina, ainda defendidos, a despeito de todas as provas científicas, por integrantes de determinadas religiões, com base em livros que só são sagrados para os praticantes dessas determinadas religiões.

Sem muito esforço de pensamento, está meio óbvio que a bíblia, por exemplo, é sagrada para os cristãos e não para os praticantes de religiões não-cristãs. Ao apontar a incoerência dos discursos religiosos que se autodenominam ‘verdades soberanas’, Yuval Harari faz seus leitores – ao menos aqueles que leem a obra com o coração e a mente abertas – perceberem o quanto são totalmente sem sentido as chamadas ‘guerras santas’, como as empreendidas durante as Cruzadas. E nos lembra o que Bono Vox já cantava nos versos de ‘Pride (In the name of love)’, que em nome da fé, seja lá qual for, a humanidade comete inúmeras atrocidades há séculos.

O humano em perspectiva

Embora narre fatos grandiosos do homo sapiens em sua breve jornada de 70 mil anos em uma linha temporal que aponta espécies humanas de 2 milhões e um planeta de 4,5 bilhões de anos, o livro de Yuval Noah Harari é também uma valiosa lição de humildade.

Nossa espécie evoluiu a partir de determinados aspectos aleatórios que se somaram e favoreceram as revoluções cognitiva, agrícola, industrial e, recentemente, tecnológica, mas não somos a última coca-cola do freezer, como costumamos pensar. Inclusive, a julgar pelos avanços das IAs (inteligências artificiais), computação quântica e medicina genética, podemos estar com nossos dias contados.

Se não destruirmos o que resta do planeta, “em nome do progresso”, ou se a Terra não for apagada do universo por um meteoro maior do que aquele que supostamente extinguiu os dinossauros, a jornada dos sapiens pode estar próxima do seu fim e seremos suplantados – ou evoluídos – em novas criaturas, talvez híbridas de humano e máquina, que teriam de receber, inclusive, uma nova classificação taxonômica.

Trata-se, portanto, de uma leitura útil para colocar o ego dos sapiens nos eixos e nos dar uma perspectiva realista da nossa existência, a qual tentamos imprimir sentido por hábito social e não porque de fato haja algum sentido na evolução ou em outras regras da natureza.

O homo sapiens, tadinho, que sempre se julgou ‘Rei da Criação’, reinando soberano sobre os outros animais do Jardim do Éden, na verdade começou sua viagem por puro acaso. O interessante, foi o que fizemos dessa causalidade que gerou a vida a partir da junção de compostos químicos. Desde o momento que tomamos consciência de quem éramos e passamos a criar as narrativas de quem pretendíamos ser, modificamos a face da Terra e por isso, temos um preço a pagar…

Trechos do livro para dar o gostinho:

(…)

“Talvez se as pessoas estivessem cientes da Primeira e da Segunda Onda de Extinção, seriam menos indiferentes à Terceira Onda, da qual fazem parte. Se soubéssemos quantas espécies já erradicamos, poderíamos ser mais motivados a proteger as que ainda sobrevivem. Isso é especialmente relevante para os grandes animais dos oceanos. Ao contrário de seus equivalentes terrestres, os grandes animais marinhos sofreram relativamente pouco com a Revolução Cognitiva e a Revolução Agrícola. Mas hoje muitos deles estão prestes a se extinguirem em consequência da poluição industrial e do uso excessivo dos recursos oceânicos por parte dos humanos. Se as coisas prosseguirem no ritmo atual, é provável que baleias, tubarões, atuns e golfinhos sigam os diprotodontes, as preguiças-gigantes e os mamutes rumo ao desaparecimento. De todas as grandes criaturas do mundo, os únicos sobreviventes da inundação humana serão os próprios humanos e os animais domésticos que servem como escravos na galés da Arca de Noé.”

(…)

“Como podemos determinar aquilo que é biologicamente determinado daquilo que as pessoas apenas tentam justificar por meio de mitos biológicos? Um bom princípio básico é “a biologia permite, a cultura proíbe”. A biologia está disposta a tolerar um leque muito amplo de possibilidades. É a cultura que obriga as pessoas a concretizar algumas possibilidades e proíbe outras. A biologia permite que as mulheres tenham filhos – algumas culturas obrigam as mulheres a concretizar essa possibilidade. A biologia permite que homens pratiquem sexo uns com os outros – algumas culturas os proíbem de concretizar essa possibilidade.

A cultura tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros.”

(Sapiens, Yuval Noah Harari, Págs. 84, 154 e 155, Editora L&PM)

Ficha Técnica:

Sapiens – Uma breve história da humanidade

Autor: Yuval Noah Harari

Tradução: Janaína Marcoantonio

Editora: L&PM

464 páginas

R$ 40,73 na Amazon (pesquisa em 08/01/2019)

Um pensamento sobre “Resenha: Sapiens (Yuval Noah Harari)

  1. Que óptimos insights colhidos deste livro. Muito convidativo. Amei a expressão: “a biologia permite, a cultura proíbe”. é iluminante e sombrio, ao mesmo tempo.

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