Resenha: Fordlândia (Greg Grandin)

A cena do Vagabundo sendo engolido pelas engrenagens de uma super máquina, em uma linha de montagem fabril, é de 1936, mas ainda serve de metáfora para definir o capitalismo devorador e o consumo predatório que exigia cada vez mais indústrias para alimentá-lo.

Da mesma forma, Admirável Mundo Novo, romance de 1931 de Aldous Huxley, imagina um futuro governado por uma ditadura super tecnológica, onde os humanos vivem em um país modelo e são rigidamente controlados, embora tenham a ilusão de liberdade e progresso.

As duas obras, frequentemente, são lembradas como visionárias por definirem aspectos do mundo atual, com suas estruturas que esmagam pessoas, as pasteuriza e desumaniza. As séries de ficção como Black Mirror têm de onde tirar inspiração. Mas não somente ela.

Não à toa, o filme Tempos Modernos, de Charlie Chaplin, e o romance distópico de Aldous Huxley, estão entre as muitas referências usadas pelo professor de história norte-americano Greg Grandin para compor Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva.

O livro, publicado no Brasil pela Editora Rocco, faz um apanhado da história da construção das cidades modelo de Fordlândia e Belterra, na região do rio Tapajós, na Amazônia, entre os anos 1920 e 1940 do século passado.

A cidade fictícia de Admirável Mundo Novo se chama Nosso Ford e representa uma ácida e direta crítica do autor ao mundo onde ele vivia e aos processos de padronização e eficiência industriais desenvolvidos por Henry Ford. Sensível às mudanças de seu tempo, Aldous Huxley conseguiu antever com clareza para onde a humanidade caminhava graças a homens como o multimilionário empresário americano do ramo automotivo, tido como um dos responsáveis por lançar as bases do capitalismo moderno.

Admirável Mundo Novo não faz concessões ao Fordismo, termo criado em 1914 para definir os sistemas de produção em massa e gestão idealizados por Henry Ford. Fordlândia tampouco ameniza o tom da crítica ao definir a empreitada do empresário na Amazônia como ‘arrogância’.

Mas não porque os homens da Ford pensaram que dominariam a floresta. E sim porque em seus experimentos no Brasil e nas cidades fabris modelo que construiu nos Estados Unidos, Henry Ford subestimou o tamanho do monstro que criou.

Até o fim de sua vida, Ford acreditou que era capaz de reverter os impactos negativos do capitalismo industrial, porque ele realmente era entusiasta do progresso e acreditava na tecnologia como salvação da humanidade.

No entanto, como o próprio Greg Grandin afirma: as forças liberadas pelo empresário e seus pares engoliram não só pedaços generosos da floresta sul-americana, mas dos EUA; ajudando ainda a redesenhar geografias em todo o mundo e a moldar as relações de trabalho e de consumo contemporâneas.

A desculpa da borracha

Ford pretendia iniciar uma plantação de seringueiras e explorar o potencial econômico da maior floresta tropical do mundo. O Brasil já havia vivido tempos áureos na produção e exportação de borracha, dominando o mercado global. Mas, graças à biopirataria, milhares de sementes de seringueira brasileira foram contrabandeadas para colônias europeias na Ásia. E a Europa passou a dominar o mercado de borracha, controlando a política de preços, o que atrapalhava a indústria automotiva de Ford.

Mas, não era só para tornar-se independente do mercado mundial de borracha que Ford gastou milhões de dólares na Amazônia. Além do interesse econômico, como um legítimo homem de seu tempo – imbuído daquele ‘sentimento cristão de obrigação civilizatória do homem branco’ -, o magnata pretendia com as duas cidades no coração da selva, concebidas para reproduzir nos trópicos o ‘american way of life’ (modo de vida americano), “trazer o progresso para uma região subdesenvolvida e inculta”.

Um ensaio de história com ares de epopeia e pitadas de romance de aventura, embora toda a narrativa seja real e calcada em documentos da época, o livro também pode ser lido como uma acurada reportagem sobre os Estados Unidos e o Brasil do período entre as duas grandes guerras.

Entrelaçando as dificuldades para instalar as cidades modelo e as plantações na Amazônia, com o contexto histórico mundial, da América de Ford e do Brasil entre os anos 1920 e 1940, Grandin ainda apresenta um interessante perfil do empresário, mostrando sua personalidade controversa e seus anseios antagônicos.

Ao mesmo tempo em que ele defendia salários justos para os operários de sua fábrica em Detroit, aprovava os desmandos e abusos – incluindo agressões físicas e assassinatos – cometidos por um dos gerentes da empresa, para impedir a adesão de trabalhadores aos sindicatos.

Se por um lado investia em hospitais e escolas nas suas cidades modelo, por outro criava mecanismos de controle dignos da cidade huxliana de Nosso Ford, autorizando políticas sanitárias invasivas e inspeções de rotina nas casas dos trabalhadores das suas fábricas, usinas e serrarias.

Epopeia na selva

Ao iniciar o projeto na Amazônia, Ford determinou a implantação das mesmas políticas populistas e paternalistas de assistência social que desenvolvia nos Estados Unidos. Além disso, o próprio processo de concessão das terras da floresta pelo governo brasileiro foi pontuado por idas e vindas e escândalos de corrupção protagonizados por políticos e aventureiros de todo tipo.

O anúncio de sua chegada – o homem em si nunca pisou na Amazônia, mas naquela época, o Ford homem se confundia com a Ford empresa – encheu centenas de pessoas de cobiça e outras centenas de esperança por emprego, moradia digna e educação.

Algo bem semelhante ao que ainda acontece nos dias atuais, quando grandes indústrias anunciam a construção de fábricas em cidades remotas do Norte ou Nordeste do Brasil, ou em países pobres da África e Ásia, prometendo empregos e desenvolvimento econômico em troca de gordos incentivos fiscais e isenções.

Boa parte das vezes, os nativos empregados nessas novas indústrias não ocupam os melhores cargos com os melhores salários e, tão logo os incentivos públicos terminam, as empresas abandonam as cidades à própria sorte.

Em Fordlândia e Belterra, Henry Ford acumulou milhões em prejuízos financeiros por diversos fatores, como sua equipe não estar preparada para a vida em uma selva tropical inexplorada e não entender absolutamente nada de cultivo de borracha.

Henry Ford, no auge do seu sucesso, afirmava detestar História e, no fim da vida, adotou a História como uma obsessão que apenas alimentava um conservadorismo que ele tentava esconder a todo custo.

Mas, se ele ou seus prepostos enxergassem a História com as lentes do bom senso, não teriam demorado tanto para entender que transplantar o modo de vida norte-americano para o Brasil era um equívoco justamente por desprezar as características do país, da região amazônica e da população local.

Bastava olhar para além do próprio quintal e aprender com as nações europeias imperialistas do século XIX ou com os colonizadores/invasores ibéricos do século XVI, que usando a mesma desculpa de ‘civilizar povos incultos’ causaram feridas até hoje ainda não cicatrizadas em boa parte da África, da Ásia e da América Latina

Um trecho do livro para dar o gostinho:

“Em meados dos anos 1920, os americanos, em sua maioria, ainda pensavam em Ford como o Ford de 1914, o reformador que, com seu Dia de Cinco Dólares e seu Departamento Sociológico, prometia instalar um novo humanismo industrial, cultivar trabalhadores virtuosos e produtivos por meio da educação cívica e do poder de persuasão de altos salários condicionados a uma vida regrada. Porém, Ford havia em grande parte abandonado seu liberalismo paternal. Sua empresa, em particular a nova fábrica em River Rouge, crescera demais para isso. Ford ainda pagava melhor do que a maior parte das empresas industriais, mas passara a usar duas táticas bastante diferentes para elevar a produtividade e fazer cumprir a disciplina de trabalho em seu grande império de Michigan. A primeira tática era o aumento de velocidade, que levou a ideia de linhas de montagem sincronizadas aos limites da resistência humana e transformou o trabalho para Ford, nas palavras de um funcionário, em um “inferno na Terra que transformava seres humanos em robôs teleguiados.” “O sistema de esteira que você tem é um acionador de escravos”, escreveu a esposa de um operário a Ford. “Os US$ 5 por dia são uma benção”, escreveu ela, “maior do que o senhor imagina. Mas, oh, eles os merecem”. A cada dia parecia que a esteira se movia um pouco mais depressa, à medida que técnicos em desempenho, equipados com cronômetros, observavam os trabalhadores, imaginando maneiras de eliminar, aqui e ali, segundos de seus movimentos. Intelectuais e críticos sociais começaram a chamar a atenção para a desumanização da linha de montagem. “Nunca antes”, escreveu um observador da época, “seres humanos haviam sido tão encaixados nas máquinas como peças menores sem independência nem possibilidade de manter seu respeito próprio”.

(Fordlândia, Greg Grandin, págs. 79 e 80. Ed. Rocco)

Ficha Técnica:

fordlandiaFordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva

Autor: Greg Grandin

Tradução: Nivaldo Montingelli Junior

Editora: Rocco

400 páginas

R$ 39,20 (na Amazon em 26/12/2018)

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2 pensamentos sobre “Resenha: Fordlândia (Greg Grandin)

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