Resenha: Poemas Escolhidos de Gregório de Matos

A resenha/reportagem abaixo, em versão menor, foi publicada na edição deste sábado do Caderno 2+, de A TARDE, onde sou colaboradora. Aqui para o blog, trago a versão integral do texto, já que por essas bandas virtuais, não sofro a limitação do espaço em papel.

Boca do Inferno revisitado

Companhia das Letras relança coletânea de poemas de Gregório de Matos reunidos por José Miguel Wisnik em 1975

*Andreia Santana

Em tempos de eleição e de denúncias sobre corrupção nos bastidores da política nacional, ler os versos do bardo Gregório de Matos, poeta satírico nascido na Bahia, no século XVII, é sempre uma oportunidade de descobrir, ou lembrar, que seu trabalho continua desconcertante e atual. Se trocarmos os nomes dos governantes da época colonial para seus herdeiros no poder três séculos depois, sem grande esforço, dá para especular até que o “Boca do Inferno” era um profeta. Ou então, que a história do Brasil, para o bem e para o mal, gira em círculos infinitos.

A verdade é que Gregório não cai de moda. Prova disso é que a editora Companhia das Letras acaba de resgatar uma coletânea do autor que este ano completa 35 anos do primeiro lançamento. Trata-se do livro Poemas Escolhidos de Gregório de Matos, organizado por José Miguel Wisnik, em 1975, e na época lançado pela Cultrix, e que agora em julho, chegou ao mercado editorial com organização e revisão do próprio Wisnik.

Ao longo das 360 páginas do livro, Wisnik não apenas reproduz os melhores versos apócrafos atribuídos à lavra gregoriana, mas em notas de rodapé muito bem embasadas, lança luz sobre fatos, nomes, datas e expressões do português arcaico usadas pelo bardo setecentista. Para quem nunca teve contato com a obra do autor, nem nas aulas sobre poesia satírica no Ensino Médio, a publicação funciona como boa introdução não apenas aos poemas de Gregório de Matos, mas a todo um período histórico e social retratado por seus versos de escárnio e de amor.

Wisnik também assina o prefácio do volume, onde além de traçar um esboço biográfico do poeta, explica o processo de seleção dos poemas que compõem a obra. A alusão – ou provocação – ao fato de que ainda não existe na história da literatura brasileira uma edição crítica da obra de Gregório de Matos, a mesma feita 35 anos atrás quando da primeira publicação dos Poemas Escolhidos, demonstra ainda que, embora não caia de moda, o “Boca de Brasa” não tem sido valorizado como merece.

A imagem do cruxificado se aplica bem ao ranço de devoção barroca de Gregório de Matos

Língua ferina – Taxado de pornográfico por uns, de ressentido por outros e de gênio por terceiros, Gregório de Matos usou e abusou da poesia para desancar desafetos e cantar os males da administração colonial. Mas não fez só isso. Na pudica sociedade do século XVII, revelou segredos de alcova com picardia e praticou o amor cortês, herança do cancioneiro da Europa medieval. Na produção atribuída ao autor, não falta ainda a poesia sacra, revelando seu lado de homem religioso e contraditoriamente barroco.

A rima precisa e a ironia ora escrachada, ora sutil de seus versos chamam atenção de imediato de quem se propõe a passear pelos Poemas Escolhidos. Para facilitar a vida dos leitores, Wisnik divide o livro em Poesia de Circunstância: Satírica e Encomiástica (de louvação), Poesia Amorosa Lírica e Erótico-Irônica; e por fim Poesia Religiosa.

A partir dessa divisão fica mais fácil perceber as idiossincrasias da personalidade do “Boca de Brasa”: apesar de escrever poesia erótica, mantinha opiniões conservadoras e preconceituosas em diversos temas, sobretudo a homossexualidade. Mesmo cobrando progresso para a Bahia “madrasta de seus filhos”, mantinha-se preso a exigências de respeito à casta dos bem-nascidos (nobreza da qual fazia parte) e um desprezo pelos brancos da terra – nascidos no Brasil -, negros, índios e mestiços.

No entanto, o mesmo Gregório, filho de senhor de engenho, homem branco, pertencente à elite, formado em universidade europeia (Coimbra) possuía seu lado “popular”. A adoção da sátira como forma de expressão e o uso de expressões em tupi e africanas nos seus poemas é prova de que estava sintonizado com as mudanças de seu tempo, embora maldissesse a mistura de raças e a cultura daí resultante.

Os versos sobre Salvador, por exemplo, ou sobre a Cidade da Bahia, como era chamada naquela época, revelam uma relação ora de enternecido amor, ora de ódio da então capital da colônia. A raiva tanto vinha do abandono que sucessivos governos corruptos legaram à cidade quanto do ressentimento de classe. Principalmente com a crise da economia açucareira, ascensão dos comerciantes “sem berço” e, consequentemente, a bancarrota dos senhores de engenho.

Mapa de Salvador no século XVII, a época em que viveu o “Boca do Inferno”

Poesia apócrifa – O grande problema para publicar Gregório de Matos advém do fato de que o poeta, de próprio punho, nunca assinou ou publicou nenhum verso. Sua poesia é considerada apócrifa (sem comprovação de autoria) e está registrada em códices, ou seja, livretos manuscritos onde admiradores copiavam os versos de Gregório de Matos, que além de satírico de mão cheia, teria sido também violeiro e repentista dos mais profícuos.

Na seleção para os Poemas Escolhidos, José Miguel Wisnik optou por utilizar como base uma edição das Obras Completas feita pela Academia Brasileira de Letras, em 1933, e também cita diferenças em alguns versos, apontadas por outra edição de obras completas feita por James Amado, em 1968. A primeira tentativa de catalogar a obra de Gregório, porém, teria sido feita em 1882 (no século XIX), por Alfredo Vale Cabral, que morreu antes de concluir o intento.

Na Bahia, outro profundo estudioso e conhecedor da obra do Boca do Inferno é o escritor e professor da UFBA, Fernando da Rocha Peres. Além disso, em 1983, Pedro Calmon publicou uma biografia do autor, usando como base de pesquisa os próprios versos de Gregório; enquanto a escritora Ana Miranda romanceou a vida do poeta em Boca do Inferno, de 1989.

Quem foi Gregório de Matos?

Gregório de Matos e Guerra era o caçula de três homens, filhos de abastada família baiana ligada a cultura açucareira. Teria nascido em dezembro de 1633. Há quem registre 1636, conforme relata o próprio Wisnik no prefácio dos Poemas Escolhidos. Aos 14 anos, viajou da Bahia para Lisboa, onde concluiu os primeiros estudos, rumando depois para a famosa Universidade de Coimbra, onde estudou Direito Canônico. Em Portugal, depois de formado, exerceu importantes cargos na magistratura e só voltou para Salvador em 1683, para exercer cargos importantes no clero: Desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia e tesoureiro-mor da Sé Primacial do Brasil. Tido como intratável, acabou brigando com o arcebispo, por se recusar a vestir roupas sacerdotais obrigatórias para os cargos. Com uma vida envolta em mistérios e com vários mitos em torno do seu nome, Gregório teria até entrado na mira da Inquisição, mas escapou graças ao prestigio da família. Tinha também fama de mulherengo, esbanjador e boêmio incorrigível.

 

Ficha Técnica:

Poemas Escolhidos de Gregório de Matos

Seleção: José Miguel Wisnik

Editora Companhia das Letras

360 páginas / Preço não informado

*Andreia Santana é editora de internet do portal A TARDE On Line, atualmente responsável pelo hotsite Eleições 2010, e colaboradora do Caderno 2+, de A TARDE.

11 pensamentos sobre “Resenha: Poemas Escolhidos de Gregório de Matos

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  2. Oi,não gostava de literatura,mas fiz um trabalho sobre o barroco e gregório de matos,gostei tanto que meu tcc é sobre gregório de matos,me apaixonei por este tema,e, se tiver alguma dica que possa me dar,agradeço muito.

  3. Cara Andreia Santana,

    Saudação!
    Estou estarrecido diante do que acabo de ver e ler no seu blog. É que, através da Editora Sotaques, Piracicaba, SP, estou publicando o meu primeiro livro, escrito aos poucos (alguns dos seus poemas datam de 1983), o qual terá o nome de GREGÓRIO DE MATOS FOI UM JESUS CRISTO BAIANO (UM TRIBUTO A GREGÓRIO DE MATOS) e visa combater os “nossos maus costumes”, que vão desde vícios de linguagem, sotaques, passando por drogas ilícitas, drogas lícitas e drogas livres, chegando até roubos, furtos e corrupções.
    O curioso é que eu jamais pensei que alguém já tivesse imaginado Gregório de Matos com um jesus cristo baiano – alguém que tentou salvar a Bahia e os baianos da má fama que temos hoje, chacoteados em todo o resto do país pelos nossos vícios de linguagem e demais maus costumes, mas, que, em troca, foi “crucificado” e quase foi morto por causa do bem que tentou trazer a este povo sem bons costumes (eu sou baiano). Deixo, abaixo, o link da minhas página, onde você pode ler POEMA AO POETA GREGÓRIO DE MATTOS (último título listado no Meu Blog).

    http://clubecaiubi.ning.com/profile/nascimento

  4. Olá, Andreia!
    Me chamo Lorena e tenho um blog sobre literatura
    (Literato:http://www.moinhodeverso.blogspot.com.br/). Venho postando resenhas sobre a lista da Universidade Federal do Paraná (resido em Curitiba), já que prestarei o vestibular ao fim do ano, decidi que a pesquisa e reflexão através de resenhas e biografias seriam de extrema utilidade. Pois bem, achei seu post muito interessante e claro (devo dedicar-lhe os parabéns, és uma escritora de mão cheia!). Dessa forma, quero pedir-lhe permissão para compartilhar em meu blog sua postagem sobre Gregório de Matos, com as devidas fontes, obviamente. Espero sua resposta e agradeço desde já sua atenção :)
    Um abraço,
    Lorena.

  5. Andreia, obrigada. Achei aqui exatamente aquilo de que precisava para melhor compreender tão complexo livro (ou seja, para os poucos entendidos em Barroco, Gregório de Matos, …).

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