“Afundo dentro de meu corpo como se dentro de um pântano, um atoleiro, onde só eu conheço os pontos de apoio seguros para os pés. Terreno traiçoeiro, meu próprio território. Torno-me a terra contra a qual encosto minha orelha, para escutar rumores do futuro. Cada pontada, cada murmúrio de ligeira dor, ondulações sucessivas de matéria na época de muda periódica, inchaços e diminuições de tecido, as secreções viscosas da carne, esses são os sinais, essas são as coisas de que preciso saber. A cada mês fico vigilante à espera de sangue, temerosamente, pois quando ele vem significa fracasso. Falhei mais uma vez em satisfazer as expectativas de outros, que se tornaram as minhas próprias expectativas.
Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de transporte, ou um implemento para a realização de minha vontade. Eu podia usá-lo para correr, para apertar botões, deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem. Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de mim.
Agora a carne se arruma de maneira diferente, sou uma nuvem, congelada ao redor de um objeto central, com o formato de uma pera, que é duro e mais real do que eu e que incandesce vermelho dentro de seu invólucro translúcido. Dentro dele está um espaço, imenso como o céu à noite e curvo como ele, embora negro-avermelhado em vez de negro. Pontos infinitesimais de luz incham, chispam, explodem e murcham dentro dele, incontáveis como estrelas. Todo mês há uma lua, gigantesca, redonda, pesada, um augúrio. Ela transita, se detém, segue em frente e passa, desaparece de vista, e eu vejo o desespero vindo em minha direção como uma grande fome, uma escassez absoluta. E sentir aquele vazio, vezes sem fim, e outra vez. Escuto meu coração onda após onda, salgado e vermelho, batendo e batendo sem parar, marcando o tempo.” (Margaret Atwood, O conto da Aia, págs. 90 e 91, Ed. Rocco, 2017, Rio de Janeiro) #metadeleitura2019 #livro16
As personagens femininas são preciosas nesse livro, com suas dores e resiliência. A feiticeira Nãozinha, a enfermeira do asilo Marta Gima e a mulher de Excelêncio, Ernestina, cativam o leitor por suas histórias trágicas e pela dignidade com que enfrentam os dissabores do destino.
A escrita poética e onírica de Mia Couto, a reverência com a história de seu país e com as pessoas que nele vivem e seus conhecimentos sobre a natureza (Mia é biólogo de formação) transformam esse pequeno romance – são 152 páginas – em uma joia da literatura contemporânea. A varanda do frangipani é terno e delicado como flores, mas tem a força de um vendaval… #resenha #mardehistorias O texto completo da resenha está no blog, link no perfil, ou em: mardehistorias.wordpress.com
“A cidade mudou muito, mas ainda continua sendo muito familiar para mim. É como visitar uma tia velha, um incômodo misturado com deja vu, mas com uma sensação de pertencimento muito forte. Mesmo morando tanto tempo fora, tendo rodado meio mundo, nunca me senti verdadeiramente em casa em lugar nenhum, só aqui nessa cidade de merda, que cresceu bastante de quando fui embora pra cá, mas acabou igual a todas as outras, com as mesmas lojas, os mesmos carros, as mesmas roupas, os mesmos problemas e as mesmas pessoas vagando pra lá e pra cá com seus celulares”. (Victor Mascarenhas, O som do tempo passando, pág. 33, 2019, Cafeína Produção de Conteúdo) #metadeleitura2019 #livro15 #autorbaiano O lançamento em Salvador aconteceu no mês passado. Nesta quarta-feira, dia 13, será a vez de Feira de Santana. No blog (link no perfil ou acessem mardehistorias.wordpress.com) tem a resenha e informações para quem quiser comprar o livro, que foi publicado por um selo independente criado pelo próprio autor. Aproveitem para pesquisar as resenhas de outras obras dele que já li (Xing Ling e Um certo mal-estar), porque as histórias de Victor são muito bacanas!
“Eu tinha que desfazer aquele engano. Caso senão eu nunca mais teria sossego. Se faleci foi para ficar sombra sozinha. Não era para festas, arrombas e tambores. Além disso, um herói é como o santo. Ninguém lhe ama de verdade. Se lembram dele em urgências pessoais e aflições nacionais. Não fui amado enquanto vivo. Dispensava, agora, essa intrujice. Lembrei o caso do camaleão. Todos sabem a lenda: Deus enviou o camaleão como mensageiro da eternidade. O bicho demorou-se a entregar aos homens o segredo da vida eterna. Demorou-se tanto que deu tempo a que Deus, entretanto, se arrependesse e enviasse um outro mensageiro com o recado contrário. Pois eu sou um mensageiro às avessas: levo recado dos homens para os deuses. Me estou demorando com a mensagem. Quando chegar ao lugar dos divinos já eles terão recebido a contrapalavra de outrem”. (Mia Couto, A Varanda do Frangipani, 2007, Companhia das Letras) #metadeleitura2019 #livro14
Quanto mais velhos, mais o passado assombra a memória. E quando o novelo dos tempos idos é desfiado com a ajuda de um amigo que já morreu, fica a incômoda sensação de que as lembranças trazem seu quinhão de acerto de contas. E é para acertar as contas com as sequelas da infância que o matemático Archibaldo, protagonista de Não encontrei o passado, tenho que voltar (Octavo, 2019), decide retirar do limbo a história de seu meio-irmão mais velho, Adamastor, e, por tabela, a sua própria.
Em seu novo livro, que flerta com o realismo fantástico, o escritor José Carlos Mello resgata Pedro C. (de As dez vidas do senhor Cardano, também já lido e resenhado no blog) para que ele, diretamente do Hades, sirva de arauto para uma notícia que inquieta Archibaldo e abre velhas feridas no solteirão beirando a misantropia.
Pedro C., amigo de infância de Archibaldo, aparece para o velho professor durante um passeio de rotina e lhe conta que seu meio-irmão, há muito sumido no mundo, retornou a Porto Alegre (RS), cidade onde se passa a maior parte da história, e está vivendo no peculiar Hotel Versailles, cenário e personagem onipresente do livro.
Com seus hóspedes de biografias distintas (como um boêmio incorrigível, uma professora pudica, um ex-militante comunista, um antigo diplomata e um ex-torturador); além da gerente descendente de nazistas, o Versailles é uma mistura de pensão e casa de repouso para idosos. A convivência dos moradores, que podia ser um barril de pólvora pelas mágoas e oposições ideológicas, explode é nas mesquinharias do envelhecimento.... (A resenha completa está no blog - link no perfil - e na página do Skoob) #resenha #mardehistorias
"Numa manhã agradável, fazendo minha caminhada diária, encontrei um amigo do tempo de infância. Não nos víamos há muitos anos; fiquei surpreso ele ter me reconhecido. Precisei de mais tempo para lembrar quem era. Só recordei após encontrar na memória das coisas antigas, indicações do nosso passado. Lembrei que fora assassinado há alguns anos. Cordial, caminhou em minha direção e agradeceu eu ter ido ao seu enterro. Lembrei seu nome, Pedro C., e que fora presidente do fã-clube local de uma notável cantora do rádio lá pelos anos 1950. – Você sabe que seu irmão, Adamastor, voltou à cidade? Mora num hotel da rua da Conceição, perto da igreja. Tomado de surpresa com o que ouvi não disse nada. A notícia me deixou inquieto. Continuando a prosa, descreveu o hotel e relembrou coisas do passado, como ocorre em encontros de pessoas velhas. Só ele falava, e muito, eu ouvia alternando atenção com o espanto de estar escutando um morto..." (José Carlos Mello, 'Não encontrei o passado, tenho que voltar'; pág. 9, 2019, Octavo) #metadeleitura2019 #livro13 Uma história que começa com esse toque de realismo fantástico já me seduz e conquista.