"Ali, na claridade do verão, eu pensava na decisão que havíamos tomado, naquela ideia extraordinária de matar todos os judeus, fossem quem fossem, jovens ou velhos, bons ou maus, de destruir o judaísmo na pessoa de seus portadores, decisão que recebera o nome, agora mais que conhecido, de Endlösung: "solução final". Mas que bela palavra! Entretanto, nem sempre ela havia sido sinônimo de extermínio. Desde o início, reivindicava-se para os judeus uma Endlösung ou uma selge Lösung (solução completa) ou ainda uma allgemeine Lösung (solação geral), e dependendo da época isso significava exclusão da vida pública, exclusão da vida econômica, enfim, deportação. E pouco a pouco o significado havia deslizado para o abismo, mas sem que o significante, por sua vez, mudasse, e era quase como se esse sentido definitivo tivesse sempre vivido no coração da palavra e a coisa tivesse sido atraída, abocanhada por ele, pelo seu peso e sua opressão desmesurada. (...) Pois, a rigor, como resistir à sedução de uma palavra dessas? Teria sido igualmente inconcebível resistir à palavra obedecer, à palavra servir, à palavra lei. E talvez fosse esta, no fundo, a razão de ser dos nossos Sprachregelungen, afinal bastante transparentes em termos de camuflagem (Tarnjargon), mas úteis para manter aqueles que se serviam dessas palavras e dessas expressões entre as pontas afiadas de sua abstração. (...) Nas correspondências, nos discursos também, predominavam as estruturas na voz passiva "foi decidido que...", "os judeus foram transportados para as medidas especiais", "essa difícil tarefa foi realizada", e assim as coisas faziam-se por si só, ninguém nunca fazia nada, ninguém agia, eram atos sem atores, o que é sempre tranquilizador" (...)
"Eu podia ver que ele se sentia incomodado com minha ideia de visitar Warren. Como se eu estivesse encomendando meu caixão para ficar sentado antes de morrer. Mas, por outro lado, não posso culpá-lo, porque ele não percebe que descobrir quem realmente sou, o significado de toda a minha existência, envolve conhecer as possibilidades do meu futuro e também do meu passado, aonde estou indo tanto quanto aonde já fui. Apesar de sabermos que, no fim do labirinto, a morte nos aguarda (e isso é algo que nem sempre soube, até pouco tempo atrás, pois o adolescente em mim pensava que a morte acontecia só com outras pessoas), vejo agora que o caminho escolhido pelo labirinto me faz quem sou. Não sou apenas uma coisa, mas também uma maneira de ser, uma das muitas maneiras, e saber os caminhos que percorri e os que me restam vai me ajudar a entender o que estou me tornando..."
Relendo o texto que escrevi para a apresentação do Mar de Histórias, lá nos idos de 2008/2009, quando o blog foi criado, percebo que hoje, em 2022, eu jamais teria criado uma página na internet com o nome de Bala no Alvo (embora esse seja o nome do cavalo fofinho do Cowboy Woody em Toy Store). Nos últimos anos, qualquer coisa relacionada a balas, tiros, bancada da bala (deputados que defendem a liberação das armas), é entristecedor e amargo em um país como o Brasil, onde tantos jovens são perdidos para a violência ano após ano. Quando pensei em Bala no Alvo para o meu antigo blog era como uma metáfora para a assertividade, a precisão em acertar o xis de uma questão. Mas, mais velha e experiente do que quando comecei a escrever na internet, nem essa assertividade toda me atrai, ultimamente. A vida é inconstância, tenho aprendido ao longo dos anos, e mesmo nossa forma de abordar determinados assuntos precisa ter algum espaço de manobra, manejabilidade, capacidade de se expandir e abarcar os conhecimentos novos que adquirimos desde quando postamos um texto pela primeira vez, a lucidez de rever conceitos, de aprofundar as experiências, a honestidade - e o direito - de mudar de ideia quando a antiga não era bacana. Me autoedito muito, porque acho esclarecedor e terapêutico voltar atrás e rever o que precisa de revisão. Somos work in progress até a morte... #blogmardehistorias