Resenha: Mama

A solidão desse lado do Atlântico

Mama foi lançado no Brasil pela TAG
(Foto: Andreia Santana/@blogmardehistorias)

Dos 75 milhões de lares brasileiros, 50,8% são chefiados por mulheres. As negras – a categoria que inclui as pretas e pardas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – respondem pelo sustento de 21,5 milhões de lares (56,5% do total). Os dados são do terceiro trimestre de 2022, ainda sem contabilizar as informações do último censo populacional. Quando o recorte é o trabalho doméstico, 92% das mulheres brasileiras ocupadas exercem essa atividade. As pretas e pardas são 65% do grupo. Os dados também são do IBGE.

Embora Mama, o arrebatador romance de Terry Mcmillan, lançado no Brasil pela primeira vez pela TAG Experiências Literárias em janeiro deste ano, seja ambientado nos Estados Unidos, é nas mulheres e trabalhadoras domésticas negras brasileiras que penso ao ler esse livro.

Mama é um raio-x sem atenuantes da maternidade exercida em meio à pobreza, a solidão e as muitas opressões vividas pelas mulheres pretas e pardas, seja aqui ou nos arredores de Detroit.

Mildred, a protagonista, não quer ver as filhas ‘de joelhos esfregando o chão dos brancos’ e apela para todas as estratégias possíveis, dentro da realidade em que vive – o livro é ambientado entre as décadas de 1960 e 1970 – para dar a elas mais opções do que teve.

Ela e suas crianças são filhas da diáspora e carregam em suas vidas as sequelas do longo processo de escravização negra e do racismo estrutural que justificou a escravização de milhões de africanos e seus descendentes por quase 400 anos e se perpetuou em preconceitos ainda atualmente presentes na sociedade norte-americana e na brasileira.

Não tem como ler esse romance sem fazer o paralelo com as consequências da escravidão. É nas entrelinhas da vida doméstica da população afro americana em um distrito empobrecido de Detroit, que Terry Mcmillan mostra que por lá, nos Estados Unidos das oportunidades para ‘todos’, esse ‘todos’ não contempla a negritude, tanto quanto aqui no Brasil, o país da miscigenação (muitas vezes forçada e violenta) e da ‘democracia racial’ que mascara tentativas de embranquecimento.

Não à toa, os dois países estão na lista dos últimos a abolir a escravidão, já no avançar do século XIX. Nós, quase beirando o século XX, fomos ainda mais atrasados que os sobrinhos do Tio Sam. O processo de reparação histórica, então, se arrasta a passos de formiga e sempre esbarrando nos obstáculos erguidos pelas mil faces do racismo.

A história de Mama começa com Mildred aos 27 anos e mãe de cinco crianças com idades próximas. Essa mulher ainda jovem e quase imatura, que pariu pela primeira vez aos 17, provoca uma mistura complexa de sentimentos nos leitores.Extremamente apegada aos filhos, é ao mesmo tempo negligente, dura na demonstração do seu afeto pelas crianças e bastante repressora.

Ela exige dos filhos muito mais do que se deve exigir de qualquer criança, mas essa é a única forma como Mildred sabe ensinar a sua prole a sobreviver em um mundo hostil. Por outro lado, ela também é capaz de qualquer coisa para garantir que não falte o básico para as crianças. Os seus sacrifícios não são gratuitos, Mildred é uma mulher adoecida e que adoece os filhos.

O marido é ausente, violento e, ao mesmo tempo, uma vítima da masculinidade tóxica e, lógico, também filho da diáspora, do racismo, da falta de educação acadêmica e da negação das oportunidades profissionais. Não dá, igualmente, para olhar para esse personagem preto e pobre sem refletir sobre a opressão da branquitude sobre os corpos e as vidas negras.

O livro traz ainda uma reflexão necessária e poderosa sobre a afetividade, a união e os laços de dependência, medo, respeito e reparação que unem as famílias diaspóricas, miscigenadas ou não. Existe amor, mas muitas vezes misturado com toneladas de pesar, de revolta, de abuso de drogas, abuso emocional, carências muitas. O álcool, a heroína ou qualquer outro entorpecente atuam para anestesiar a angústia que o desenraizamento do tráfico negreiro e do racismo provocaram.

No caso da família disfuncional e sobrevivente de Mildred, impossível não traçar um paralelo com os lares periféricos brasileiros, onde mães extenuadas, solitárias e negligenciadas em suas próprias necessidades básicas precisam ‘matar um leão’ por dia para criar suas crianças pretas, que são igualmente agredidas no ambiente escolar e em outros espaços sociais.

Capa da edição de Mama nos EUA
(Foto: Divulgação)

A violência doméstica [e aqui não só aquela perpetrada pelo machismo contra as mulheres e LGBTs, mas a de pais e mães contra crianças] no contexto de Mama e das periferias do Brasil e do mundo colonizado (leia-se, invadido pelos europeus) ganha contornos sociais profundos e cruéis. É o indivíduo e todo o sistema sufocante e embrutecedor por detrás das ações dele.

E, como não podia deixar de ser, em uma história sobre maternidade visceral e muitas vezes tóxica, é preciso ressaltar que Mildred inspira empatia e rejeição, ao mesmo tempo e até na mesma cena por muitas de suas atitudes.

Diante desse contexto, outro tema central que costura a história é a solidão e a sexualidade da mulher negra, muitas vezes preterida pelas brancas ou pelas pardas, objetificada pelo homem branco, oprimida e agredida pelo homem preto, desumanizada em suas muitas dores.

Não à toa, os maiores índices de violência obstétrica – e por tabela violência médica em geral – no Brasil ocorrem contra pessoas pretas e pardas, baseando-se na crença racista de que a carne preta sente menos dor que a branca.  

Herdeiro de A cor púrpura

Mama foi originalmente publicado em 1987, nos Estados Unidos, poucos anos depois do magistral A cor púrpura, de Alice Walker, que é de 1982. Na época, criou-se a expectativa de que Mama seria ‘o novo A cor púrpura’. E, até hoje, há quem defenda a comparação.

Mas, depois de ler o livro de Terry Mcmillan, que é excelente, achei que a tentativa de forçar semelhanças entre as duas obras é um daqueles exageros do mercado literário para pegar carona no sucesso colossal do livro de Alice Walker, transformado em um filme igualmente impactante por Steven Spielberg e tendo Whoopi Goldberg no seu maior papel dramático.

Mama é um herdeiro, uma espécie de tributário de A cor púrpura. Mas não é igual, não é imitação, nem é inferior ou superior. É reducionismo dizer que o livro de Mcmillan é uma nova versão do livro de Walker e acredito que a comparação exista porque como os dois foram escritos por autoras negras, norte-americanas e contando histórias dramáticas de mulheres negras, em uma leitura apressada, pensa-se que é tudo a mesma coisa. Mas não é.

Cena de A Cor Púrpura, de 1985, baseado no livro de Alice Walker
(Foto: Divulgação)

A cor púrpura é um livro escrito em primeira pessoa, é um romance epistolar, ou seja, em formato de missivas [cartas], que Celi, a protagonista, escreve para Deus, como forma de desabafo e de passar a limpo a história da própria vida, no sul racista e conservador dos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Já Mama tem uma narradora onipresente, que conta a história de Mildred e suas crianças em terceira pessoa, na periferia de uma cidade industrial, nas bordas do sonho americano ao qual ela e seus descendentes não têm pleno direito.

As histórias e personagens também são distintas, a escrita de Walker e Mcmillan são bem diferentes em estilo e os dois livros refletem momentos e situações de opressão às mulheres pretas, mas por perspectivas próprias. Celi viveu anos silenciada, a não ser pelas cartas para Deus. Mildred não tem papas na língua.

Mesmo que existam sofrimentos em comum – o racismo, o machismo, a solidão e a violência sofrida tanto dos companheiros negros quanto do mundo branco -, a forma como cada mulher lida com essas situações é diferente e subjetiva em cada um dos livros.

Para mim, são livros complementares no sentido de traçar um panorama da negritude norte americana e entender os contextos históricos e sociais dos Estados Unidos, mas suas histórias podem e devem ser apreciadas em separado.

A cor púrpura e diversas outras leituras de autoras negras, como as obras de Toni Morrisson, de Maya Angelou ou de Maryse Condé – como o magnífico O coração que chora e que ri – podem dar ao leitor um contexto melhor para apreciar a força de Mama. Ou podem ser boas leituras posteriores, porque as mulheres pretas têm voz poderosa e elas devem ser ouvidas…

O exemplar que eu li:

É o livro de janeiro de 2023 da TAG Curadoria, um dos dois clubes da TAG Experiências Literárias. A escolha do livro de Terry Mcmillan foi feita pelo escritor baiano Itamar Vieira Júnior, autor de Torta Arado e do recém-lançado Salvar o Fogo. A publicação, feita pela TAG, tem capa assinada pela artista plástica Mariana Rodrigues. A TAG costuma fazer parcerias com editoras, mas em alguns projetos, o clube assume todo o processo. Para quem quiser ler também, a única edição em português disponível até o momento é essa da TAG (veja ficha técnica abaixo). Na Amazon, há a versão em inglês, para importar.

A experiência TAG:

A TAG tem um aplicativo para os assinantes que oferece acesso aos conteúdos extras de suporte à leitura. Pessoalmente, o que eu tenho aproveitado desses extras são as playlists pensadas para cada livro. No caso da seleção de músicas para Mama, a equipe caprichou e juntou na mesma lista as minhas muito amadas Nina Simone, Ella Fitzgerald e Billie Holiday. Ganhou meu coração para sempre. As playlists são montadas no Spotify, mas dá para migrar para o Deezer, que é o tocador que eu utilizo. Estou ouvindo essa seleção até ‘furar’, como se dizia dos antigos discos de vinil. Tem sido ótima companheira nas jornadas diárias (trabalho ouvindo música). Na revista que vem com o livro, há entrevistas com a autora e com o curador. Além da revista, que também é publicada em versão digital, o conteúdo extra de Mama traz um podcast sobre o livro, informações do projeto gráfico em vídeo feito pela artista criadora e uma lista de indicações de autoras negras e seus livros com tema semelhante ao de Mama, como Tony Morrison (Amada), Buchi Emecheta (As alegrias da maternidade), Brit Bennett (As mães) e Maya Angelou (Mamãe & eu & mamãe).

Ficha Técnica:
Mama
Título original: Mama
Autora: Terry McMillan
Tradução: Petê Rissatti
Editora: TAG Experiências Literárias
Meu exemplar: TAG Curadoria/Janeiro 2023
288 páginas (Edição para assinantes da TAG)
*R$ 80,90 (preço na loja da TAG)
*R$ 73,00 (usado, na Estante Virtual)
*Preços pesquisados em 18/05/2023
**Amazon vende a edição de 2005 da New American Library (em inglês)

Um pensamento sobre “Resenha: Mama

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