Herman Melville previu a Síndrome de Bournout
A recusa de Bartleby em executar as tarefas que seu chefe esperava dele quando o contratou, a princípio parece um ato de desobediência civil. Mas é cansaço. Com Bartleby – O escriturário [em algumas traduções, o escrivão], Herman Melville antecipa a Síndrome de Bournout, a fadiga crônica, o esgotamento tão profundo que faz com que o indivíduo se aliene completamente, apagado no exterior e no seu íntimo, até o estágio de demência.
Primeiro ele se automatiza, ao realizar dezenas de cópias de petições como se fosse uma impressora humana e nisso lembra o operário vivido por Charlie Chaplin em Tempos Modernos. A novela de Melville, de 1853, parte da mesma premissa do filme de Chaplin, lançado décadas depois [Tempos Modernos é de 1936]: o trabalhador moído e trucidado pelas engrenagens do sistema. No caso de Bartleby, ele se afoga em tarefas monótonas e repetitivas a serviço de um sistema judiciário burocrático.
Tanto em Tempos Modernos quanto na novelinha de menos de 100 páginas de Herman Melville, depois do autômato ser sugado até a última gota pelas condições deploráveis de trabalho e pela pressão da rotina, ele cede lugar ao alienado. Bartleby trava. De pé, por detrás do biombo que o isola do restante da repartição, ele mira o vazio e, lentamente, perde a razão.
Os colegas não o compreendem. O chefe, inicialmente, também não. E a crítica social de Herman Melville é certeira ao colocar na conta do estranhamento do chefe diante da conduta de Bartleby, todo um estranhamento social diante das doenças mentais em geral e, atrelado a isso, das doenças mentais que afligem especificamente trabalhadores extenuados.
Incapacitado para o trabalho e incapacitado para a vida, o malfadado escriturário se afoga em solidão e em uma apatia que aos poucos se converte em uma paralisante depressão. Em um mundo pós-contemporâneo, onde as exigências do mercado de trabalho são ainda maiores do que no tempo em que Melville criou Bartleby, o bordão do personagem – “prefiro não fazer” – se converte em prenúncio de futuros sombrios: prefiro não viver.

(Imagem: Divulgação/Imdb)
E ele se deixa lentamente definhar porquê de si mesmo só resta uma carcaça magra e pálida, pois lhe falta ânimo até para comer, para se mexer do cantinho onde o deixam.
É de se pensar que em meados do século XIX, quando Bartleby – o escriturário foi publicado, ou mesmo na primeira metade do século XX, quando Chaplin lançou Tempos Modernos, que as condições de trabalho eram as piores possíveis e que hoje, ao menos, existem direitos fundamentais que naquela época nem se imaginava.
Mas, se compararmos a história de Melville com a realidade atual, o fenômeno da ‘uberização’, a terceirização desenfreada, onde todo mundo vira MEI [Micro-Empreendedor Individual] e fica tudo certo, mesmo que o cidadão venda o almoço para pagar o jantar e trabalhe, no mínimo, de 12 a 16 horas do seu dia. Basta um passeio nas redes sociais para ler desabafos de trabalhadores de diversas idades. A sombra de Bartleby paira sobre nós.
Esse texto, que agora em 2023 completa 170 anos, é tão atual que chega a incomodar. Bartleby pode ser qualquer um dos frustrados millenials à beira de um infarto aos 40 anos; traz no seu âmago o desencanto de milhares de pessoas que viviam para o trabalho até que este mastigou seus cérebros e absorveu suas almas e que, uma vez destituídas de uma função, não conseguem se enxergar como nada além de uma casca vazia…
No cinema e no teatro:
Bartleby – o escriturário já foi adaptado para o cinema, em 1970, com direção de Anthony Friedman. John McEnery, que dois anos antes tinha vivido Mercúrio na adaptação de 1968 de Romeu e Julieta dirigida por Franco Zefirelli, interpreta o escriturário e Paul Scofield é o seu chefe. Em 2001, a novela de Herman Melville ganhou nova adaptação cinematográfica, dessa vez dirigida por Jonathan Parker e estrelada por Crispin Glover – o George McFly em De Volta para o Futuro e o Grendel de Beowulf -, como Bartleby; e o comediante David Paymer, como o chefe.
O texto também já esteve nos palcos brasileiros. Em 1953, Luís de Lima, o primeiro tradutor de Bartleby no Brasil, produziu e estrelou, em São Paulo e no Rio de Janeiro, um drama de mímica baseado na novela. Esse é considerado o primeiro espetáculo dramático sem uso da palavra na América Latina. A outra adaptação para o teatro é dos anos 1990, e traz uma releitura mais contemporânea da obra, feita pela companhia de Teatro Hip-Hop.
O exemplar que eu li:
É a versão em e-book da Coleção Novelas Imortais, idealizada pelo escritor Fernando Sabino, nos anos 1980 e reeditada pela Rocco, nos anos 2000. A coleção reúne novelas – estilo de texto literário situado entre o romance e o conto – de autores clássicos. Cada livro da coleção tem um prefácio escrito por Sabino, que além de apresentar o livro, também oferece informações sobre a biografia dos autores, situando a obra no contexto de vida e carreira de cada um. Acessei o e-book via Kindle Unlimited. Alguns volumes da coleção estão disponíveis no sistema de empréstimos do serviço; e outra parte está à venda na loja Kindle, na Amazon. Busquei em livrarias online valores e disponibilidade do livro físico, mas encontrei apenas de vendedores particulares na própria Amazon ou na Estante Virtual. Em sites de livrarias como a Dois Pontos, que inclusive tem um clube literário de assinaturas, consta como esgotado. Há, no entanto, dezenas de outras edições, incluindo uma recente e bem bonita da Editora Antofágica.

Bartleby, o escriturário
Autor: Herman Melville
Tradução: Luís de Lima
Prefácio: Fernando Sabino
Editora: Rocco, 2010/Jovens Leitores
96 páginas
Como ler? Essa edição da Rocco está disponível no catálogo do Kindle Unlimited para empréstimo aos assinantes. A assinatura do serviço, que disponibiliza até 10 livros para empréstimo por mês, é R$ 19,90.
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