Os terráqueos são os piores ‘monstros ‘ do espaço
“Minhas canções e coreografias estão aqui. Elas preencheram meus anos, os anos em que me recusei a morrer. E para isso eu escrevi, escrevi e escrevi, fosse meio-dia ou três da manhã. Para não estar morto”
(Ray Bradbury no prefácio de O homem ilustrado)
A primeira vez que tive contato com O homem ilustrado foi em A cidade inteira dorme, coletânea de contos de Ray Bradbury que li na sequência da obra-prima do autor, a distopia Fahrenheit 451. Dessa vez, a experiência foi um pouco diferente. A coletânea O homem ilustrado (Biblioteca Azul, 2020), reúne 19 contos do escritor inspirados nas tatuagens do personagem atormentado pelo fato das ilustrações do seu corpo ganharem vida, sempre com desfechos sinistros. Esse livro é como uma expansão da história original de O homem ilustrado, em que ele serve de tela para Bradbury pintar seus dramas alienígenas, em que o principal perigo no universo, o monstro no espelho, é sempre o ser humano.
Alguns dos contos da coletânea inspirada em O homem ilustrado também aparecem em A cidade inteira dorme, como o maravilhoso ‘Hora Zero’, sobre crianças indomáveis, pais e mães relapsos e alienígenas espertos. A diferença dessa coleção, no entanto, está no fato de todas as narrativas serem sobre ETs ou sobre os anseios da humanidade em conquistar o espaço.

(Crédito da imagem: Reprodução)
O que é perfeitamente compreensível diante do fato do ano original da publicação do livro ser 1951, nos primórdios da corrida espacial e das disputas entre os Estados Unidos e a ex-União Soviética, no pós-II Guerra, que culminaram no lançamento da Sputnik e na chegada à lua.
As histórias dessa coletânea também já haviam sido publicadas em outras coleções ou antologias das quais Bradbury participou. Antes de reunir os 19 contos de O homem ilustrado, no entanto, ele revisou cada um dos textos. O autor, que morreu em 2012, com mais de 90 anos, produziu incansavelmente por toda a vida.
O fascínio pelo espaço – e o consequente medo do desconhecido – é tema recorrente nas histórias e uma das mais famosas da coleção é O homem do foguete [The rocket man], que inclusive inspirou Elton John e Bernie Taupin a compor a música homônima, uma das mais bonitas do repertório de Elton John.
Dedos verdes na ferida
O interessante nesses contos é que, além da maestria com que Bradbury conta histórias, o leitor também é brindado com a mesma verve crítica de Fahrenheit 451. Nas histórias de O homem ilustrado e usando as civilizações alienígenas como base ou metáfora, o escritor transcende a ficção científica clássica para colocar o dedo em feridas difíceis para as quais a humanidade nunca deseja olhar com atenção.
Se em Fahrenheit 451 ele denuncia a censura e um regime opressor que aposta na ignorância dos cidadãos para manter-se no poder. Em O homem ilustrado, ele disserta sobre os riscos de um colapso ambiental [sim, já nos anos 1950, afinal as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki haviam sido detonadas no final da II Guerra]; a xenofobia [os humanos das histórias consideram os alienígenas inferiores]; o culto à futilidade, a sociedade de consumo e hedonista sem senso crítico; a mediocrização da educação e a alienação [o conto ‘Os exilados’, sobre escritores vivendo no espaço após serem banidos na Terra é um deleite para bibliófilos]; e o racismo, principalmente no sul estadunidense.

(Foto: Marissa Roth/Acervo NYT)
Um dos contos da coletânea, inclusive, é uma sequência de outra história do autor que aparece em As crônicas marcianas e que foi escrita em 1950, antes mesmo de Fahrenheit. Nessa primeira parte, Bradbury pensa em um mundo onde todas as pessoas afrodescendentes do sul dos Estados Unidos resolveram abandonar a Terra e colonizar Marte, provocando um colapso na economia sulista.
Na sequência, publicada na coleção de O homem ilustrado, astronautas brancos chegam a Marte 20 anos depois do êxodo afro-americano, mas a história no Planeta Vermelho foi reescrita e não se assemelha em nada àquela registrada na Terra sob a perspectiva eurocêntrica do colonizador/invasor/escravocrata.
Bradbury, no prefácio dessa coletânea explica que seus contos antirracismo enfrentaram dificuldades para encontrar editores dispostos a publicá-los. Também foram bastante criticados por leitores racistas e o autor chegou a receber cartas de fãs pedindo para ele retirar os textos de suas coletâneas. Essas histórias, no entanto, resistiram, assim como resistem as obras clássicas que ao longo do tempo se propuseram a desconstruir preconceitos e opressões.
O exemplar que eu li:
Foi a versão em e-book da edição lançada em 2020, no centenário de nascimento de Ray Bradbury (1920-2012) pela Biblioteca Azul, que publicou quatro obras do autor no Brasil naquele ano, inclusive Fahrenheit 451. Recebi o e-book na minha assinatura mensal do Skeelo Books. Na verdade, no pacote da assinatura havia outra publicação como livro do mês para os assinantes, mas há a opção, até 24 horas antes do arquivo ser disponibilizado na sua estante virtual, do assinante trocar o livro por um outro do seu interesse se a sugestão do aplicativo não for do agrado. Nesse caso especifico, troquei um livro de autoajuda [essa para mim é a falha do Skeelo] pelas sensatas palavras de Bradbury.
Leia também:
>>Reportagem de 2021 do Estadão sobre a obra de Ray Bradbury

O Homem Ilustrado
Autor: Ray Bradbury
Tradução: Eric Novello
Editora: Biblioteca Azul (2020)
320 páginas
Gênero: Contos
*R$ 27,83 na Magazine Luiza, R$ 26,99 na Amazon ou para assinantes do Skeelo Books
*Pesquisado em 17/02/23
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