Resenha: Deixa ela entrar

‘O som e a fúria’ de Lindqvist

Uma criança vampira vaga solitária pelo mundo, dependendo da ajuda de adultos quebrados e moralmente duvidosos para conseguir sangue, que como bem diz o conde Drácula, “é vida”. Uma criança humana solitária vaga pela escola e sua vizinhança, fugindo da violência de outras crianças que aprendem desde cedo a crueldade ensinada por osmose em lares desfeitos ou com os pais frustrados, depressivos, desgastados e desencantados com as relações, os empregos, os governos…

O ano é 1982, na Europa tensa pela Guerra Fria, as usinas nucleares e a ameaça eterna de Terceira Guerra Mundial escondida sob a rivalidade política, econômica e tecnológica entre os russos e os norte-americanos. E o cenário, a pragmática Suécia, mais especificamente os subúrbios de Estocolmo, onde vive a classe trabalhadora, em conjuntos habitacionais cinzas e tristonhos. Mais ainda no inverno. Principalmente, debaixo do manto branco da neve.

Deixa ela entrar, thriller de terror de John Ajvide Lindqvist [Globo Livros, 2012], é uma história cheia de pequenas e grandes violências, algumas tão cruas, assustadoras e escatológicas que reviram o estômago muito mais do que a carnificina de vampiros ou zumbis. É, também, uma história de amor tão triste e quase tão trágica quando Romeu e Julieta, se Shakespeare tivesse escrito o drama dos ‘amantes de Verona’ com outras possibilidades de arranjo afetivo que extrapolassem a heterossexualidade; ou com protagonistas que não se encaixam no mundo binário de homens e mulheres.

Cena da versão sueca de Deixa ela entrar
(Foto: Reprodução)

O livro de Lindqvist é um bem escrito e costurado suspense escandinavo, quase noir, com investigações policias que avançam meio desleixadas e personagens cheios de humanidade e contradições. Me lembrou a saga literária do veterano cansado de guerra Kurt Wallander, de Henning Mankell, transformada na série de quatro temporadas magistrais, com Kenneth Branagh já na casa dos 50 e poucos anos, vivendo o policial título.

Mas, Deixa ela entrar também é uma espécie de ópera do horror. Trágico, soturno, pesado, opressivo e melancólico, quase gótico em sua atmosfera poética e sinistra. A escrita de Lindqvist oscila entre o lirismo e a selvageria, um Baudelaire vestindo a pele da criatura de Frankenstein. A beleza desse livro está no quanto a criança vampiro Eli e o adolescente Oskar perambulam por um mundo perverso com uma inocência tão pueril que chega a encantar e comover o leitor, deixando-o apreensivo quanto aos seus destinos.

Vampiros e sexualidade

É importante ressaltar a tradução para o português do título original da obra, em sueco, e o quanto essa ‘escolha’ por dar a Eli um gênero oposto ao de Oskar contraria a própria história engendrada por Lindqvist.

O título do livro em sueco é Låt den rätte komma in, que em tradução literal para o português seria algo como ‘Deixe a pessoa certa entrar’, muito mais coerente com a proposta da história e com a forma como a criança vampiro Eli se define:

“Não sou menina, não sou menino…”

Quando escrevi sobre Drácula de Bram Stoker, anos atrás, lancei ao acaso uma teoria que me ocorreu enquanto lia o livro, a de que o ‘amor’ imortal do conde não seria Mina Harker, mas Jonathan. Ainda assim, haveria uma espécie de frustração pela não-vida e pela danação eternas, a sede insaciável (por sangue? amor? compreensão?) causada pelo vampirismo.

Eli na versão norte-americana do livro de Lindqvist
(Foto: Reprodução)

O cinema transformou Mina em reencarnação de um amor há muito perdido, por ela ser de um gênero oposto ao de Drácula, porque o cinema pressupôs que Drácula era um homem. Mas, tal qual Eli, o senhor da Transilvânia e das criaturas da noite não parece ter um gênero definido. Ele se entende muito além do que homem ou mulher.

Francis Ford Copolla, não sei se de propósito ou em um ‘ato falho’ joga toda a carga erótica da sua releitura barroca de Drácula na cena da navalha suja com o sangue de Jonathan, que se corta no barbear, sendo lambida por Drácula. Mark Gatiss (ator e roteirista britânico, co-criador da série Sherlock, da BBC) foi menos sutil e transformou Jonathan em uma das ‘noivas’ do Drácula em sua adaptação da obra para a Netflix, em 2020.

Lindqvist também não aposta em sutilezas: Eli e Oskar se beijam algumas vezes e dormem de conchinha, mesmo quando Oskar descobre que Eli não é menina e nem menino. Se ninguém estudou ainda na academia a questão da sexualidade e da identidade de gênero dos vampiros, deixo aqui a provocação e, quem sabe, um estímulo.

Versões para o cinema

Deixe a pessoa certa entrar [e agora opto por usar o nome correto do livro] já foi adaptado para o cinema duas vezes e também virou uma série, recentemente. Assisti ao filme sueco, de 2008, primeiro, e esse se transformou em um dos meus filmes preferidos de suspense/terror/thriller. No Brasil, recebeu o mesmo título do livro por aqui, Deixa ela entrar.

Depois, junto com o meu filho, assisti a versão norte-americana, de 2010. Hollywood sempre faz versão em inglês de filmes de outros países porque o público de lá rejeita dublagem, legendagem e atores falando outros idiomas. A versão americana, no Brasil, se chama ‘Deixe-me entrar’. É boa, mas a sueca é mais fiel à história original, embora peque na questão do gênero de Eli.

Série da Paramount+ é livre adaptação do universo do livro
(Foto: Reprodução)

Infelizmente, não posso dar outros detalhes do passado da criança vampiro, que são melhor elucidados no livro, inclusive com a questão da identidade de gênero e sexualidade, sob o risco de dar spoiler a quem não leu ainda o livro. Mas advirto aos leitores mais sensíveis e propensos a gatilhos que há cenas fortes de abuso.

A série, que estreou em 2022 no Paramount+, é uma nova adaptação do livro de Lindqvist, mas bem aquém da história original. É basicamente outro argumento que pega carona no fato do livro ter uma legião de fãs mundo afora. Pela sinopse divulgada no ano passado pela emissora, “Eli é uma menina que contraiu um vírus que a transforma em vampira e seu pai faz de tudo para encontrar a cura enquanto também precisa arrumar sangue para ela”. A relação de pai e filha está no centro da trama da série e não a relação da criança vampiro com Oskar. É quase uma realidade paralela com personagens de nomes semelhantes.

O exemplar que eu li

É a versão em e-book da edição de 2012 da Globo Livros. O livro digital faz parte da minha estante do Skeelo, serviço de assinatura mensal que disponibiliza um livro ou mais livros por mês para os associados. Algumas operadoras de TV por assinatura e telefonia móvel têm convênio com o Skeelo, que é acessado via aplicativo para Android e IOs. O serviço tem livros gratuitos, mas os melhores estão nos planos pagos ou via convênios com operadoras. Dá para assinar direto também no site deles aqui.

Ficha Técnica:
Deixa Ela entrar
Autor: John Ajvide Lindqvist
Tradução: Marisol Santos Moreira
Editora: Globo Livros
Ano de Publicação: 2008 (Suécia) e 2012 (Brasil)
508 páginas
R$ 32,90 (Kindle) ou para assinantes do Skeelo

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