
(Foto: Pinterest)
“Em nome do amor, o que mais em nome do amor?” A pergunta de Bono em Pride (In the nome of love), uma das canções mais famosas da banda irlandesa U2, é uma metáfora sobre as religiões e o quanto, ao longo da história, a fé e o amor por Deus foram usados para justificar atrocidades inexplicáveis. As mulheres sabem bastante desse tema. E na carne. As garotas madalenas (Gutemberg, 2019) é uma ficção histórica baseada em um dos muitos capítulos tenebrosos da devoção cristã. No caso específico do livro, da Igreja Católica.
Ambientado em Dublin, a capital irlandesa, onde, aliás, Bono nasceu, o livro escrito por V.S. Alexander – é um pseudônimo -, conta a história das Lavanderias de Madalena, ou Asilos de Madalena, estruturas mantidas em conventos católicos ou em prédios administrados por outros credos cristãos, para onde eram enviadas as mulheres que a sociedade machista, misógina, patriarcal e preconceituosa considerava ‘pecadoras’ e que, por isso, deveriam ser submetidas a trabalhos forçados e outras violências ‘em nome da redenção dos pecados e do amor’.
Os Asilos de Madalena são a Gilead do mundo real. A forma como as madalenas viviam nesses locais que foram instituídos desde o século XVIII e existiram até o começo dos anos 1990, é bastante semelhante àquela das aias de O conto da aia, de Margaret Atwood.
Confinadas nos conventos ou instituições cristãs, as madalenas eram forçadas a cumprir exaustivas rotinas de trabalho análogo à escravidão nas lavanderias dos abrigos, que por sua vez, prestavam serviços para hotéis, hospitais e famílias ricas. As igrejas e congregações ganhavam dinheiro com o serviço das mulheres, mas elas não viam um centavo. Presas em uma vida monástica compulsoriamente, eram agredidas física e psicologicamente, obrigadas a vestir uniformes o tempo inteiro, tinham os cabelos cortados e, às vezes, também raspados sem suas permissões, eram mal alimentadas e negligenciadas nas questões de saúde, inclusive a íntima. Milhares morreram abandonadas nesses abrigos.
As madalenas viam-se recolhidas nos asilos por diversos motivos: engravidar sem casar, ser uma adolescente considerada rebelde pela família, por rejeitar pretendentes, por gostar de festas e de se divertir como qualquer pessoa comum, por beber ou fumar, por ter aspirações intelectuais, por estupro [sim, a culpabilização das vítimas era uma norma e tem longos séculos de história] e até por serem ‘bonitas demais’ e vistas como uma ‘tentação’ aos párocos e vizinhos. As mães solteiras eram separadas das suas crianças e essas colocadas para adoção. Ao menos que alguém – geralmente um homem – intercedesse por uma madalena tirando-a do convento, a prisão durava até a morte.
As famílias que enviavam mulheres para esses locais – elas também eram mandadas para os asilos pela Justiça – nunca as visitavam, não lembravam sequer que estavam vivas. As ‘penitentes’, como também eram chamadas, não podiam receber nem cartas. Não tinham acesso à educação formal e as que estudavam eram obrigadas a abandonar os estudos ao serem levadas para os abrigos. Não podiam ler ou ter qualquer tipo de lazer, a não ser um banho de sol vigiado pelas freiras, como as detentas de um presídio.
A vida das madalenas era uma rotina diária do trabalho nas lavanderias seguido de orações. O confinamento vinha atrelado à morte social da mulher e, mesmo as que conseguiam sair dos asilos, estavam marcadas. A mácula de ter vivido em um dos abrigos impedia que muitas reconstruíssem suas vidas caso conseguissem sair de lá. Além disso, mulheres vibrantes, inteligentes e produtivas, após anos de prisão, transformavam-se em espectros do que haviam sido um dia. Algumas, inclusive, desenvolviam Síndrome de Estocolmo ou entravam para o noviciado com a intenção de se tornarem freiras. Infelizmente, as que agiam assim se comportavam como as ‘tias’ das aias de Margaret Atwood: eram cooptadas pelo sistema e passavam de oprimidas a opressoras.
Em 2013, um grande escândalo na imprensa da Irlanda divulgou que no terreno de um antigo convento onde viviam madalenas, foi encontrada uma vala comum com centenas de ossadas de adultos e crianças. Investigações mostraram que os ossos eram de antigas internas e de bebês. A história das madalenas, sempre escondida debaixo dos tapetes das ordens e congregações religiosas, ganhava ali novo capítulo. Ainda hoje, o tema é tabu na Irlanda e em outros países onde os asilos existiram, como Inglaterra, França e Estados Unidos.
Antes mesmo das ossadas serem descobertas, em 2002, Peter Mullan, ator e diretor escocês, dirigiu um filme sobre as madalenas da vida real, The Magdalene Sisters, vencedor do Festival de Veneza. No Brasil, o longa é conhecido como Em Nome de Deus [em janeiro de 2023, quando essa resenha foi publicada, a produção estava disponível no catálogo da Amazon Prime].
O filme toca na mesma ferida escavada por V.S. Alexander em seu romance histórico, mas não é uma adaptação do livro. Tanto um quanto outro, no entanto, se debruçam sobre as histórias das injustiçadas e esquecidas prisioneiras dos Asilos de Madalena.
No livro de Alexander, três jovens, Teagan Tiernan e Nora Craven, de 16 anos, e Lea [sem sobrenome], na faixa dos 20, são confinadas por motivos diferentes no convento das Irmãs da Sagrada Redenção, na Dublin de 1962, onde funcionava uma dessas lavanderias.
Teagan é uma garota de classe média, filha de uma dona de casa e um funcionário do governo. Nora é do outro extremo, de uma família de classe trabalhadora, e vive com os pais em um bairro operário, sonhando com artistas de cinema e em se libertar da pobreza. Já Lea é garota da zona rural, com uma história misteriosa e marcada por perdas.
As três e as demais madalenas vivem sob o peso do braço de ferro da madre superiora Anne, uma mulher traumatizada por uma tragédia do passado e que se autoflagela para exorcizar dores internas. Aos familiares das garotas, a madre promete amansar o espírito rebelde das ‘moças que não sabem se comportar’ [a analogia é com Madalena, a mulher que segundo a bíblia cristã, teve dezenas de demônios expulsos do corpo, por Jesus]. O exorcismo dessas madalenas dos anos 1960, porém, é feito à base das penitências, jejuns, torturas físicas e emocionais e muito sabão em pó, detergente e água escaldante nas lavanderias.
A narrativa entrelaça os destinos das três moças e da madre superiora, ao mesmo tempo em que apresenta aos leitores um panorama da sociedade irlandesa da época, pontuada por carolice e preconceito. A escrita de Alexander é daquelas de leitura fluída e ágil, com um toque sombrio que lembra as irmãs Brontë. A descrição da rotina das madalenas é rica em detalhes e bastante vívida. Mesmo compondo personagens fictícias, Alexander coloca em Teagan, Nora e Lea a vulnerabilidade e solidão que as ‘penitentes’ reais devem ter vivido.
Teagan é a heroína da história e, assim como a June Osbourne de O conto da aia, é a mais consciente das injustiças sofridas pelas mulheres confinadas no convento e a mais empenhada na libertação delas do jugo das freiras. Apesar de não distorcer os fatos históricos para garantir a felicidade do ‘fandom’, o que significa que não adianta ter muita expectativa, nem tudo acaba bem nesse livro, Alexander cria um desfecho coerente com a época retratada no romance e, principalmente, deixa seu tributo à memória das madalenas.
Que elas nunca sejam esquecidas, que nenhuma mulher morta nas fogueiras reais ou metafóricas ao longa da história, jamais seja esquecida…
O exemplar que eu li: É a versão em e-book da publicação da Editora Gutemberg, que traz todos os elementos do livro físico, inclusive as notas explicativas e um posfácio de V. S. Alexander, onde parte da história das madalenas reais é mais detalhada. Acessei o e-book pelo sistema de empréstimos do Kindle Unlimited.

As garotas madalenas
Autoria: V.S. Alexander (pseudônimo)
Tradução: Nilce Xavier
Editora: Gutemberg
Ano da publicação: 2019
288 páginas
*R$ 39,99 (capa comum, Amazon) ou de graça para empréstimo no Kindle Unlimited
*Pesquisado em 12/01/23