
(Foto: Andreia Santana/Blog Mar de Histórias)
Das palavras e da memória humana
O ato de falar, não o papagaiar repetitivo da ave, mas a fala consciente, separa os humanos das feras. No entanto, animais selvagens também somos, tão logo se retire a fina camada de civilização que possibilita o convívio em sociedade (ou quase). É da fala que nasce a escrita – também a leitura, por tabela – e é a fala que, na medida em que nos força a elaborar o que será dito – e escrito e lido -, estimula o pensamento e ajuda a consciência a se expandir. Quanto mais falamos, mais aprendemos.
É essa a premissa que conduz O Planeta dos Macacos, do escritor francês Pierre Boulle, um dos clássicos da ficção científica e da cultura pop transformado em filme ao menos nove vezes (veja a lista no final do texto) e em série de TV (duas), desde a publicação da história pela primeira vez, em 1963.
Boulle parte da ideia de que a humanidade inicia um processo de involução a partir do momento em que abre mão do ato de falar e, consequentemente, cede o lugar de ser ativo e ‘superior’ na criação para outras espécies de primata que, uma vez dominantes, reeditam a fazenda gerida pelos animais em A Revolução dos Bichos (George Orwell, 1945), passando a se comportar exatamente da mesma forma que seus antigos mestres, os humanos.
E aqui, vale ainda acrescentar uma outra referência importante que a leitura da alegoria de Boulle remete o leitor, a frase célebre de Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor”.
Os macacos do insólito planeta descrito por Pierre Boulle mimetizam e passam a repetir à exaustão os padrões de comportamento dos humanos que os antecederam, repassando esses padrões para as novas gerações de macacos, mas sem nunca prestar uma atenção profunda ao que fazem e, principalmente, sem questionar a tradição.
Assim como os macacos do planeta Soror, os humanos também se apegam aos seus costumes e crenças, e toda uma elite se forma e um ciclo de poder se estabelece com as bases fincadas nesse status quo. Qualquer abalo no alicerce mal encaixado e tudo vem abaixo, daí a necessidade tão urgente de um: desacreditar qualquer voz dissidente; e dois: eliminar qualquer resquício de rebelião (seja intelectual ou social) assim que ela se manifesta.
O livro de Boulle, mais que uma fábula de ficção científica ou terror, também é uma crítica certeira ao antropoceno – a era de dominação humana sobre a natureza que vêm levando milhares de espécies à extinção, inclusive coloca em risco a nossa própria sobrevivência.
O livro também tem alvos mais específicos, como a Guerra Fria [foi publicado no auge das tensões Estados Unidos x União Soviética], o American Way of Life e o consumismo, a arrogância dos acadêmicos de gabinete [representados pelos orangotangos na história], a selvageria do capitalismo [os macacos no equivalente sororiano da bolsa de valores é uma metáfora bem óbvia, que dispensa explicações elaboradas] e a destruição ambiental e de outras espécies [como a cena da colossal caçada dos gorilas].
A viagem proposta por Boulle, mas do que nos conduzir à descoberta de uma civilização irmã da humana, inclusive com todos os seus erros e acertos, é uma jornada de autodescoberta. O ser humano se mira no próprio espelho e o que vê, nem sempre é de seu agrado.
Um breve resumo sem spoiler:
Três astronautas, um deles jornalista e com a missão de registrar a experiência [é ele, Ulisse, o nome do herói da Odisseia não é coincidência, quem narra os acontecimentos do livro] viajam pelo espaço até alcançar o que supõem ser um novo sistema solar. Nesse lugar, aterrissam em um planeta que batizam de Soror, por acreditar ser inabitado, mas que é, na verdade, dominado por três espécies de primatas: gorilas, orangotangos e chimpanzés que dominam a fala, as ciências e os recursos da civilização; e onde os humanos são feras selvagens, que não falam e vivem em bandos nas florestas. A partir do encontro dos astronautas com os macacos e com esses humanos de comportamento primitivo, diversos acontecimentos levam Ulisse a fazer uma descoberta surpreendente [quem já assistiu aos filmes de 1963 ou de 2001 sabe o que é, mas quem nunca viu, leia o livro e depois vai lá no streaming ver os filmes].
O exemplar que eu li:
É a edição da Aleph, de 2020, que tem uma capinha retrô que remete às histórias em quadrinhos dos anos 1950/60. Li a versão e-book desta edição, via assinatura do Skeelo Books, um serviço de streaming de e-books e audiobooks. Nessa versão digital, o arquivo tem 3MB de extensão.
A foto da capa retrô está mais abaixo, na ficha técnica. Para ilustrar a resenha [a imagem que abre a postagem], escolhi a edição física da biblioteca de minha irmã, também da Aleph, publicada em 2015, com uma capa diferente e que também acho bastante bonita.
Nas duas edições, além da história de Boulle, há um rico arsenal de artigos e uma entrevista com o autor, quando o livro foi adaptado para o cinema pela primeira vez.
O Planeta dos Macacos no cinema*:
1968 – Título homônimo ao livro, com Charlton Heston como protagonista, mas em vez do nome francês, seu personagem tem um nome americano [claro], é a primeira adaptação da obra de Boulle, publicada cinco anos antes;
1970 – De volta ao Planeta dos Macacos, Boulle aceitou roteirizar essa continuação, embora seu livro seja uma história única e fechada, sem continuações. O estúdio mudou todo o roteiro e a história ficou infinitamente mais fraca que a original;
1971 – Fuga do Planeta dos Macacos, a partir daqui a história já foge totalmente da obra literária e vira uma franquia cinematográfica à parte;
1972 – A Conquista do Planeta dos Macacos;
1973 – A Batalha do Planeta dos Macacos, é o último filme dessa franquia dos anos 1970;
2001 – Planeta dos Macacos. Tim Burton dirige e dá sua própria e controversa interpretação da história original de Pierre Boulle. O mérito desse filme, que é protagonizado por Mark Wahlberg, Helena Bonham Carter e Tim Roth, é respeitar literalmente o final escrito pelo autor no livro de 1963. No clássico de 1968, a ideia de Boulle permanece na essência, mas a cena da descoberta de Ulisse foi alterada para algo que, na época, e ainda hoje, surpreende pela metáfora. Essa cena do filme clássico virou um ícone da cultura pop e é muito boa; embora, pessoalmente, eu prefira a ideia do autor;
2011 – Planeta dos Macacos: a origem. Esse é o filme que rendeu a Andy Serkis, nosso eterno Golum, vários elogios e indicações a prêmios por seu trabalho de captura de movimento para o macaco Cesar. O filme já traz vários recursos modernos e efeitos especiais bem mais avançados que os predecessores. Também abriu espaço para uma saga com mais dois títulos:
2014 – Planeta dos Macacos: o confronto;
2017 – Planeta dos Macacos: a guerra. Até então acredita-se que é o fim da trilogia iniciada em 2011.
*Todos os filmes listados estão no catálogo do Star+

O Planeta dos Macacos
Autor: Pierre Boulle
Tradução: André Telles
Editora: Aleph
216 páginas
R$ 30,88 para compra (pesquisado na Amazon em 26/06/22) ou R$ 19,90 na assinatura do Kindle Unlimited; ou ainda via Skeelo Books (assinatura do serviço varia de R$ 9,90 a R$ 39,90, a depender do plano. Operadoras de TV por assinatura e celular oferecem aos clientes o Skeelo em alguns pacotes de benefícios aos clientes)