
(Foto: Andreia Santana/@blogmardehistorias
Somos apenas um conjunto de tudo o que aprendemos? Valemos mais quanto maior for o nosso Q.I? Essas são algumas perguntas estimuladas após a conclusão da leitura de Flores para Algernon, clássico de ficção científica do escritor norte-americano Daniel Keyes, publicado originalmente em 1959, transformado em filme em 1968 (Os dois mundos de Charlie) – o ator principal, Cliff Robertson, ganhou o Oscar por sua interpretação do protagonista da história –, e lançado em uma edição muito cuidadosa pela Aleph, no Brasil, em 2018. Há outro filme mais recente, de 2000, chamado Um amigo para Algernon, que também adapta o livro de Keyes.
As perguntas vêm acompanhadas de vários outros questionamentos justamente porque essa obra de mais de 60 anos toca em uma questão delicada e muito presente nos dias atuais, quando se discute cada vez mais a diversidade e o respeito às diferenças: o capacitismo. Além disso, a própria ideia de um quociente de inteligência (Q.I) para medir o desempenho de alguém já não é mais tão difundida ou aceita. Atualmente, trabalha-se mais com a ideia das múltiplas inteligências e, principalmente, habilidades como maturidade emocional e social.
“Capacitismo é a ideia de que pessoas com deficiência são inferiores àquelas sem deficiência, tratadas como anormais, incapazes, em comparação com um referencial definido como perfeito”.
(Lau Patrón)
A definição acima é da escritora e ativista Lau Patrón, cofundadora da empresa Ponte Educação para a Diversidade. Ela falou sobre o tema em uma reportagem da CNN Brasil, publicada em 02/09/21 (leia aqui)
Em seu livro, Daniel Keyes questiona a sociedade capacitista de seu tempo e os equívocos cometidos em nome da crença de que o mundo deve pertencer a seres humanos perfeitos, superdotados física e intelectualmente – com Q.Is enormes – e que tudo o que advém da genialidade humana é bom e belo.
Seguindo a escola de autores como Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), esse é um daqueles livros de sci-fi desencantados com a humanidade e que botam o dedo na ferida, mostrando o lado podre das revoluções tecnológicas e os usos equivocados dos avanços científicos. A ciência aqui, que deveria libertar, oprime e segrega.
Sobre o que é?
Flores para Algernon conta a história de Charlie Gordon, um rapaz com déficit de aprendizado e deficiência intelectual, que é tratado por todos à sua volta como ‘o idiota da vila’, com condescendência e paternalismo, em processo constante de infantilização e desumanização por conta de suas diferenças.
Charlie passa por uma cirurgia revolucionária para ficar mais inteligente, um desejo que ele nutre desde criança, como forma de aceitação social, e em poucos meses é convertido em um gênio. O rapaz é o primeiro ser humano a passar pelo procedimento. Antes dele, a experiência havia sido feita com animais e só quando deu certo em um ratinho branco chamado Algernon, os cientistas criadores da técnica decidiram testá-la em humanos, escolhendo Charlie Gordon para cobaia. Há riscos, o contrato é cheio de letras miúdas, mas tanto o leitor quanto o próprio Charlie vão descobrindo esse ‘lado podre’ aos poucos.
As implicações da transformação de Charlie são complexas, principalmente porque ele passa a enxergar e entender melhor o mundo à sua volta, com uma clareza dolorosa. A história é narrada pelo próprio Charlie, em formato de relatórios de progresso, pois os cientistas pedem que ele registre tudo o que está acontecendo em sua mente, antes e depois da cirurgia.
Os primeiros capítulos – relatórios – trazem erros de ortografia, o raciocínio ainda infantil e a candura e pureza de Charlie, sua inocência em achar que todos do seu círculo de convívio são seus amigos e querem seu bem. As situações que esses ‘amigos’ o fazem passar são humilhantes, amargas e marcadas por preconceitos, mas ele não percebe.
Na medida em que a história avança, os relatórios mostram a evolução na linguagem de Charlie e em seu raciocínio e percepção e, lógico, as decepções começam. É triste quando ele se dá conta de que nunca foi tratado como um ser humano, nem mesmo depois de sua conversão em gênio, já que os gênios estão além da humanidade. Ele se ressente da solidão que acompanha sua tão sonhada superinteligência e percebe que estar muito acima da média da maioria das pessoas com quem se relaciona faz com que os ‘amigos’ se voltem contra ele, sintam medo e até repulsa pelo seu novo modo de ser e estar no mundo.
Dois estágios de consciência
O Charlie anterior à cirurgia era bondoso, porque esconder-se em uma atitude passiva, subserviente e humilde era estratégia de sobrevivência e para não levar bordoadas no sentido metafórico e no literal. As pessoas confundiam seu medo com gentileza. Ele era um bicho de estimação dócil e fofinho, mesmo após ser maltratado, como um cãozinho em busca da atenção dos donos. O Charlie pós-operação é amargo, desiludido, consciente e, por isso, ressentido com tudo o que lhe foi negado por tanto tempo.
É incompreendido não por sua capacidade de resolver equações impossíveis e falar uma dezena de idiomas, mas por ser questionador, por chamar as pessoas a responderem por seus atos. Antes oprimido, Charlie não se converte em um opressor clássico, mas seu dedo acusador e sua cobrança por respeito e pelos outros direitos que lhe foram negados, o tornam um juiz que sentencia seus antigos amigos e familiares a espiarem a culpa pelo abandono e negligência em que ele vivia.
Os flashbacks da infância do protagonista mostram desde a brutalidade e ignorância de sua mãe até a omissão e condescendência do pai, revelando que a situação do Charlie Gordon adulto era também uma sequela de muitos terrores vividos na infância.
Flores para Algernon, é importante que se diga, não tem um final redentor e é o tipo de livro que suscita mais perguntas do que apresenta respostas quando se chega à última página. A vida e a história de Charlie – e a de Algernon – são trágicas, principalmente porque nem depois de superarem até o intelecto dos cientistas que experimentaram com eles, as duas cobaias conquistam o direito de comandar a própria vida. São vistas como eternas cobaias, inclusive, objetos a serviço da ciência.
Charlie até tenta traçar os rumos de seu destino, para descobrir da pior forma possível que um intelecto avantajado não é nada quando há falta de dignidade e autonomia.
O exemplar que eu li:
Embora a foto para o blog tenha sido feita com o livro da biblioteca pessoal de minha irmã, li a mesma edição de 2018 da Aleph, só que em formato e-book. O e-book, baixado pelo Kindle Unlimited – mas apenas pela conveniência de poder ler na cama*, com a luz do quarto apagada e a claridade apenas da tela do smartphone -, só tem uma diferença em relação à versão em papel: o número de páginas. São 315 nessa versão digital. Mas, acredito que esse desacordo não se deva à existência de conteúdo extra e sim pela diferença de suporte. O arquivo digital, segundo especificações da loja Kindle, tem 2921 KB.
O e-book está disponível para compra ou empréstimo no sistema de assinatura do Unlimited. Quem tem Amazon Prime, de vez em quando ganha o direito de baixar e-books pelo Kindle Unlimited mesmo sem ser um assinante do serviço, meu caso. Minha irmã, meu filho e eu evitamos comprar livros duplicados/triplicados, já que moramos na mesma casa. Às vezes acontece.
No quarto de cada um tem um acervo particular que a gente intercambia, porque os gostos são parecidos e o que é diferente em um, completa-se no outro. Nem preciso sair de casa para fazer parte de um ‘clubinho do livro’.
*Sim, leio muito no smartphone, porque não tenho e-reader e porque é um suporte leve e que vai comigo para todo canto. E sim, preciso de luminária ao lado da cama para ler meus livros de papel no conforto.

Flores para Algernon
Autor: Daniel Keyes
Tradução: Luísa Geisler
Editora Aleph
288 páginas (livro físico) e 315 páginas (e-book)
R$ 30,00 (usado/Estante Virtual) R$ 39,90 (novo/Amazon)
R$ 19,90/mês (empréstimo para
assinantes Kindle Unlimited)
Assista o filme de 1968 (legendado)
Assista um clipe com cenas do filme de 2000