Vasto mar de sargaços conta a história da ‘louca do sótão’, a infeliz primeira mulher do abusivo senhor Rochester. Os acontecimentos são anteriores aos narrados em Jane Eire e dão outra perspectiva para a história de Charlotte, uma inclusive que os leitores do século XXI entendem muito melhor do que aqueles dos tempos das irmãs Brontë.
Hoje, embora ainda ocorram muitos casos, as relações abusivas, os maridos tóxicos e o estupro marital já não são tolerados socialmente como eram no século XIX e nem estão mais encobertos por um véu de normalidade ditado por costumes machistas e puritanos e pelos tabus religiosos que pregam a submissão da mulher. Os tabus ainda existem, mas felizmente caem em descrédito geração após geração.
Jean Rhys parte da própria realidade como mulher caribenha nascida no final do século XIX (1890, precisamente), nas Antilhas, para criar uma vida anterior que, de certa forma explica – mas não justifica – os infortúnios sofridos por Antoinette, a prisioneira de Rochester, a quem ele destitui dos bens e até do próprio nome, chamando-a contra sua vontade de Bertha.

(Foto: Andreia Santana / Blog Mar de Histórias)
Vale lembrar que uma das estratégias de apagamento da personalidade de alguém, uma das formas de desumanizar uma pessoa, é privá-la de sua identidade e de suas origens. Era o que os antigos senhores de escravos faziam ao capturar os moradores dos reinos africanos para serem explorados nas lavouras das Antilhas ou das Américas.
Além da dor do próprio processo de escravização, os brancos que exploravam a mão de obra dessas pessoas não entendiam e nem aceitavam suas línguas, costumes, crenças. O escravizado, ex-escravizado e seus descendentes eram sempre os ‘selvagens’, ‘incultos e bárbaros’ que precisavam ser ‘civilizados’ pelo europeu cristão.
Antoinette nasce no seio dessa cultura cheia de tensões e fraturas, o que ela têm em comum com a própria Jean Rhys, considerada na juventude ‘a bela imigrante exótica’ do Caribe que se muda para a Inglaterra e precisa se encaixar na cultura britânica que rejeitava até o seu ‘sotaque das ilhas’.
Nesse pequeno livro de menos de 200 páginas, mas um grandioso romance (é considerado a obra-prima da autora), Rhys – que o publicou em 1966, mas trabalhava na ideia desde os anos 20, quando leu Jane Eire e ficou perplexa e fascinada pela mulher confinada na mansão de Rochester – descreve tanto os bastidores de um casamento abusivo e tóxico, com um marido machista, obcecado, ciumento e racista; quanto fala das conflituosas relações entre as antigas colônias e suas metrópoles, ou melhor, dos países invadidos com os seus exploradores de outrora.
O cenário se alterna entre a Jamaica, a Martinica e as ilhas vizinhas e uma Inglaterra tanto assustadora (o período é a Era Vitoriana e, nas ilhas, pouco anos depois do fim da escravidão) quanto idealizada.
Todas as mazelas herdadas do período colonial costuram as entrelinhas de Vasto mar de sargaços. Das dificuldades econômicas das antigas colônias, que por séculos foram expropriadas de suas riquezas naturais, aos problemas de formação social e política de países que nasceram a partir da exploração da mão de obra escrava.
Corrupção, revolta, perversidade, loucura e abandono são algumas das nefastas heranças do colonialismo estampadas nas páginas do livro de Jean Rhys.
Esse não é um daqueles romances de final edificante como o próprio Jane Eire, mas um relato contundente, doloroso e triste da condição da mulher na sociedade patriarcal, da situação precária dos pretos e pretas no pós-abolição, das cicatrizes eternamente abertas do colonialismo e da diáspora africana; e do não-lugar das crianças mestiças, muitas delas filhas ao mesmo tempo da resistência e da opressão de suas mães e avós…
O exemplar que eu li:
Um amigo jornalista e editor de livros me falou deste romance depois que postei a resenha de Jane Eire. Confiando na dica preciosa de um leitor sensível, comprei o livro em janeiro deste ano, pela internet. Foi uma das melhores aquisições literárias de 2021 até agora.
Ficha Técnica:
Vasto mar de sargaços
Título original: Wide Sargasso Sea
Autora: Jean Rhys
Tradução: Lea Viveiros de Castro
Editora: Rocco
192 páginas
Preço: de R$ 11,00 a R$ 20,90*
*Pesquisado na Estante Virtual, Amazon e Americanas em 13/06/2021
P.S.: Para saber mais sobre a autora e o livro, leia artigo do crítico e roteirista Leonardo Peterson Lamba no site da Rocco
P.S2.: Postei esse pequeno comentário sobre o livro também no perfil do Instagram (@blogmardehistorias).
P.S3.: De certa forma, foi uma leitura complementar não apenas ao clássico Jane Eire, como também a Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. Os três livros protagonizados por mulheres e ambientados na mesma época, o século XIX, dão um panorama rico da condição feminina na sociedade do período. Seja na Inglaterra, nas Antilhas ou no Brasil, a dor das mulheres tem muitos pontos de contato…
P.S4.: Existem ao menos duas adaptações para o audiovisual de Vasto mar de sargaços, uma para o cinema, de 1993, que no Brasil recebeu o cafona e piegas nome de Mar de desejos; e uma para a TV, de 2006, da BBC britânica. Nessa minissérie, Antoinette é vivida pela ótima Rebecca Hall.