Resenha: Um defeito de cor

Luiza Mahin é pura representatividade. Independente dela ter existido em carne e osso ou não, personifica milhares de meninas e mulheres africanas que foram escravizadas e trazidas para os engenhos de açúcar da Bahia, onde sofreram maus-tratos e abusos de toda natureza. Simboliza todas as vendedoras que palmilharam as ruas da velha Salvador, subindo e descendo ladeiras com tabuleiros equilibrados na cabeça, ouvindo conversas aqui e ali, desvendando caminhos possíveis para lutar contra as opressões, tecendo redes de solidariedade, articulando famílias onde antes só havia gente expatriada e desgarrada, sem direito sequer a preservar os verdadeiros nomes, a língua e os costumes de seus países de origem. A força de Luíza transcende a história oficial. Ela cresce a partir da oralidade, da construção de uma identidade negra altiva, aguerrida e digna. Luiza Mahin é um legado, uma herança de sangue, uma tradição preservada.

E foi com essa ideia em mente, a de que Luíza é imensa, apesar dos poucos registros sobre ela a descreverem como uma mulher pequena e magra; depois de ter escrito uma reportagem sobre essa personagem cheia de significados e contradições, em 2004; de ter lido duas pequenas biografias de Luiz Gama, seu autodeclarado filho, que naveguei pelas mais de 900 páginas de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

O exemplar que eu li pertence ao acervo maravilhoso de minha irmã
(Foto: Andreia Santana/Blog Mar de Histórias)

E que livro! Que experiência rica em informações, em sentimentos, em sabedoria é essa criação de uma biografia, de uma personalidade, de uma voz ativa e de uma substância palpável, verossímil para Luíza Mahin. Até então, a personagem nunca havia definido a si mesma nas poucas linhas escritas sobre ela. Pedro Calmon, em Malês: a insurreição das senzalas, publicado em 1933, a descreve como traidora do seu povo e submissa aos brancos, por exemplo.

Não é à toa que Lázaro Ramos, em seu livro de memórias e crônicas Na minha pele (Objetiva, 2017) indica que todo mundo precisa ler Um defeito de cor. Porque Ana Maria Gonçalves têm uma história diferente daquela de Calmon para contar, uma de pertencimento e não de humilhação.

Publicado pela primeira vez em 2006, o livro faz 15 anos agora em 2021 e é uma referência do romance histórico. Em 2019, a colunista de TV Cristina Padiglione, do site Telepadi, confirmou que o livro seria adaptado para uma supersérie da Rede Globo com lançamento previsto para este ano. O projeto, liderado por Ricardo Waddington, seria adaptado por Maria Camargo e teria consultoria de Nei Lopes, músico e especialista em cultura africana.

Com a pandemia decretada em 2020, não vi mais nenhuma reportagem informando se o projeto vingou, se estavam ocorrendo filmagens ou quando as gravações ou a exibição da série começariam.

História e folhetim

O livro de Ana Maria Gonçalves é uma obra de ficção, um romance histórico épico, sobre a personagem que teria vivido na Bahia no século XIX e se envolvido em diversas revoltas como a dos Malês (em 1835) e a Sabinada (1837-38). No entanto, embora tenha criado personagens, cenários e situações para romancear a vida de Luíza, a autora fez criteriosa reconstituição de época embasada em livros, relatos, iconografia, cartas e artigos acadêmicos sobre a Bahia (Salvador e Recôncavo, essencialmente), o Rio de Janeiro, São Paulo e a costa da África oitocentistas.

Vale a pena anotar para leituras futuras a bibliografia que ela consultou e está listada no final do livro.

A história começa na África, se transporta para a Bahia junto com a protagonista, capturada ainda criança no Reino do Daomé (República do Benin) e vendida como escrava, avança do último terço em diante para o Maranhão, mais especificamente para a Casa das Minas, chega ao Rio de Janeiro e a São Paulo, com a personagem buscando um filho perdido, e retorna ao Daomé, para finalmente ser concluída na baía de Todos-os-Santos, diante da paisagem de presépio encarapitado sobre a montanha que cativou cronistas estrangeiros que aportaram em Salvador ao longo dos séculos, como a britânica Maria Graham.

Escrito em primeira pessoa, no formato de uma longa carta de uma mãe idosa e prestes a morrer, para seu filho desaparecido – e de fato Luiz Gama foi vendido como escravo com apenas 10 anos pelo próprio pai, segundo registros da vida do advogado e poeta abolicionista – Um defeito de cor não é apenas uma prestação de contas de Luíza Mahin – ou Kehinde, o nome daomeano que a autora outorga à sua personagem – para esse filho que ela perdeu ainda criança e que nem sabe se reconheceria se o reencontrasse tantos anos depois.

O livro, através de Kehinde/Luíza, é, principalmente, um balanço minucioso de milhares de vidas, tanto daquelas que sobreviveram à travessia do Atlântico e à diáspora africana, quanto as que ficaram sepultadas sob as águas. É a legitimação de todo um povo.

Apesar do tamanho de Um defeito de cor assustar leitores menos treinados às longas narrativas, a história é muito bem escrita, cativante, envolvente, recheada de conflitos, reviravoltas, descrições apuradas e muita sinestesia. O volume de informações por página precisa de um certo tempo para ser assimilado, para puxar pela memória. Mas, no caso dos leitores que prezam por entrelaçar suas leituras, os aprendizados são valiosos, principalmente para quem gosta de história. Ainda assim, de forma magistral, o livro também contempla amantes de um bom folhetim de época, com trama principal sólida e subtramas que se inserem com um encaixe cirúrgico.

Além disso, Um defeito de cor é o tipo de livro que precisava ser adotado nas escolas em um desses audaciosos projetos multidisciplinares. Os estudantes aprenderiam sobre literatura, história do Brasil, geografia e herança africana, traçariam paralelos entre situações do livro e as lutas atuais contra o racismo, entenderiam mais sobre a formação da identidade brasileira e afro-brasileira. reconheceriam o protagonismo negro na nossa história.

Para as meninas, principalmente aquelas de periferia, pretas, pobres e que ainda enfrentam muitas das violências vividas por suas antepassadas, Kehinde/Luíza Mahin é uma fonte de autoafirmação e inspiração para levar para a vida.

O exemplar que eu li

É do acervo de minha irmã, uma bibliófila e curadora de leituras como poucas. Comecei a ler em 2020, parei por alguns meses por diversos motivos, entre eles o desejo de que a história não acabasse e a angústia que alguns dos sofrimentos de Kehinde/Luiza me causavam (2020 não foi um ano fácil para quase ninguém). No começo de 2021, retomei, disposta a concluir e já sabendo que essa leitura precisaria ser compartilhada…

Ficha Técnica:
Um defeito de cor
Autora: Ana Maria Gonçalves
Editora Record
952 páginas
*R$ 59,99
*Pesquisa na Amazon em 16/05/2021

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