…com quem briguei aos 14 anos, depois de abandonar – 50 páginas depois de ter começado – O Primo Basílio. Larguei o livro, que considerei chatíssimo, para nunca mais voltar, disse eu na ocasião, do alto de minha adolescência de traça de biblioteca. Ainda não tive coragem de tentar de novo. Até o armistício decretado graças a outra história do autor, vivi em grande birra com Eça de Queiroz por exatos 33 anos.
Ele era, até poucos dias atrás, o único autor que desprezei em minha longa carreira de ‘leitora profissional’ (um amigo escritor me deu esse apelido dia desses), começada por volta dos meus 8/10 anos com uma coleção de contos de fadas comprada à prestação por minha mãe.

(Foto: Fundação Eça de Queirós/Acervo/Divulgação)
O Primo Basílio ostenta o desonroso posto de ser o único livro que eu abandonei na vida, das centenas que já li desde menina. Milhares de vezes eu pensei em reparar essa mácula na minha trajetória de devoradora de histórias, mas só de pensar no livro ainda sinto enjoo.
Fiz as pazes com Eça a partir de uma obra menos badalada do escritor português. E o fato dele ser português e eu amar vários autores conterrâneos seus – José Saramago reinando sobre todos – me deixava tristíssima. Eu queria tanto completar minha coleção de amares lusos com Eça, mas o trauma de O Primo Basílio não me deixava enamorar dele…
Em vez de começar minha redenção por Os Maias, A Cidade e as Serras, A Ilustre Casa de Ramires ou mesmo O Crime do Padre Amaro (todos esses já entraram na minha lista de leituras futuras), escolhi iniciar minha introdução tardia ao universo queirosiano por A capital, romance que é considerado o mais autobiográfico do escritor, com um protagonista que assume papel de seu alter-ego.
A capital conta a história de Artur Corvelo, um jovem poeta aspirante ao estrelato que vive com as tias em uma província no interior de Portugal, mas anseia morar em Lisboa, onde acredita que seu gênio irá conquistar os salões aristocráticos e lhe garantir fama, fortuna e uma boa posição social.
A obra começou a ser escrita em 1877, mas só foi publicada em 1925, mais de 20 anos depois da morte de Eça de Queiroz, com a supervisão do filho do autor. Através da história da busca de Artur por ascensão às classes mais abastadas e por reconhecimento intelectual, o escritor faz várias críticas à sociedade lisboeta.
Artur, como um patinho feio, luta para encontrar seu lugar no mundo, mas imbuído de muita ingenuidade e romantismo, sofre incontáveis decepções no processo. É uma jornada do herói bem às avessas essa do rapaz.
Ainda não terminei a leitura, mas fiquei tão empolgada com o sarcasmo e o humor auto-depreciativo do texto que resolvi antecipar o anúncio de que agora já posso morrer em paz porque não estou mais ‘de mal’ com Eça de Queiroz. Muito pelo contrário, prevejo que nós dois vamos nos tornar bons amigos daqui para a frente, assim me acenam os deuses da literatura.

(Foto: Fundação Eça de Queiroz/Acervo/Divulgação)
Por que a cisma com O Primo Basílio?
A cisma com O Primo Basílio não tem relação com a minha pouca idade quando resolvi encarar a leitura daquele livro que minha mãe trouxe para casa emprestado de uma colega do seu trabalho.
Aos 14 anos, em 1988, eu já era leitora assídua de Machado de Assis, de José de Alencar, de Camilo Castelo Branco, de Jorge Amado, de Rachel de Queiroz e de vários outros autores nacionais e dos poucos estrangeiros que chegavam à minha casa graças aos empréstimos e às compras de minha mãe em livreiros que vendiam de porta em porta, com pagamento via carnê. Ainda lembro da minha avó pagando ao ‘moço dos livros’ nas datas acertadas com a minha mãe. Ele assinava o canhoto do carnê referente à prestação daquele mês e destacava para ela guardar.
As coleções baratinhas de banca de revista também apareciam muito lá em casa, foi nelas que, também na adolescência, conheci William Shakespeare, Alexandre Dumas e Edgar Alan Poe, meu amado imortal sombrio.
Já tinha lido A cor púrpura, de Alice Walker, que peguei emprestado de uma tia e nunca mais devolvi, e Negras Raízes, de Alex Haley, cuja série de TV inspirada na obra havia passado na TV aberta brasileira nos anos 1980 e que eu, minha mãe e minha irmã íamos dormir de madrugada assistindo.
Definitivamente, minha cisma com Eça não era falta de maturidade literária, porque fui uma traça precoce, principalmente considerando minha origem familiar modesta, uma vida de orçamento sempre apertado, mas com uma mãe que mesmo com pouco estudo, tratava livro feito pão.
A questão também não era ser uma obra clássica. Machado de Assis e José de Alencar são autores clássicos e embora eu não seja uma grande fã de Alencar, nunca abandonei nenhum dos seus livros. De todas as obras dele, inclusive, gosto bastante de Senhora, com sua protagonista bem à frente do tempo em que a história foi escrita. Já falei de Aurélia aqui no blog.
Acredito que minha birra com O Primo Basílio tenha uma explicação bem mais simples e na esfera do gosto mesmo. A história dos amores clandestinos de Luisa e seu casamento morno com Jorge não me agradou, não me convenceu, não me arrebatou e o autor ganhou essa fama de chato que durou 33 anos, injustamente, coitado.
A questão também não era o adultério, eu li Madame Bovary adolescente e achei a história de Gustave Flaubert muito boa. Já adulta, em 2001, fiz uma reportagem especial sobre o adultério na literatura (aqui nesse post fiz uma espécie de resumo misturado com making off). Essa é uma das matérias que mais gostei de escrever e que me legou vários aprendizados.
Escrever sobre o adultério na literatura também deu início a uma das minhas obsessões de estudo: o lugar da mulher na sociedade, como foi vista ao longo do tempo, como a representaram, no que isso a prejudica até hoje. Fiz outra sobre a mulher na música, que em 2010 me inspirou a escrever um artigo acadêmico sobre a mulher nas letras de Noel Rosa.
Compondo essa longa reminiscência para selar minha paz com Eça de Queiroz, percebo agora que talvez, naquela época, quando eu ainda tinha tanta estrada para percorrer nos aprendizados e na construção de ser e estar mulher em um mundo ainda feito por e para os homens, Luísa me incomodou e entristeceu. Talvez algum dia, eu segure a mão dela de novo. Ou talvez não, acho que Eça pode me perdoar. Eu me perdoei…
É Queiroz ou Queirós?
Fiquei com essa dúvida porque pesquisando sobre as obras do autor e sobre a vida dele, me deparei com as duas grafias de seu nome. Descobri que outras pessoas também têm dúvidas e que o assunto é até tema de debate entre os estudiosos da sua vasta produção literária. Aqui nesse artigo da Academia das Ciências de Lisboa, tem algumas explicações.
P.S.: Terminei de ler A capital no começo de Junho de 2021 e é isso mesmo, Eça me conquistou com o seu protagonista molenga, meio boboca, cheio de um romantismo piegas e frouxo. Artur Corvelo parece alguns Millenials que eu conheço, sempre aspirando a ser o mais novo Steve Jobs, mas com uma preguiça enorme de se mexer...
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Comece Os Maias, depois siga com A Relíquia,éjamaia deixará de amar o Eça
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