
Vivesse nos dias de hoje, Jane Eyre seria uma dessas meninas ‘amaldiçoadas’ com um ‘dedo podre’ para escolher namorados. Mas, a realidade é que embora seus interesses amorosos tenham vivido em meados do século XIX, encontrariam facilmente homônimos quase 200 anos depois. O patrão Sr. Rochester e o primo religioso fanático St. John ganham com facilidade o título de ‘embustes’. Se fosse uma mocinha do século XXI, Jane talvez optasse por cuidar de si mesma. Uma jovem solteira, bem resolvida, que não trocaria a própria liberdade por relacionamentos tóxicos. A questão é que ela é uma heroína de 1847 e o casamento, naquela época, ainda era uma das poucas possibilidades de realização feminina.
O Sr. Rochester, 20 anos mais velho que a protagonista, é o machista dissimulado e manipulador, que disfarça autoritarismo em atos de cavalheirismo; ao mesmo tempo em que subestima a mulher que diz admirar. Ele idealiza um idílio romântico que o redima de erros cometidos no passado, não busca uma companheira, mas alguém que o salve, o perdoe pelos passos em falso. Se revolta e mostra toda a dureza de sua personalidade quando a escolhida se recusa ao papel.
Rochester é o tipo de homem que pressiona uma mulher até enlouquecê-la só para depois ter de quem reclamar, justificando assim sua tirania. É capaz de se casar com alguém que ele considera inferior e ainda atribui a essa desafortunada todos ‘os vícios e pecados das filhas de Eva’. Em resumo, é misógino e anseia pela mulher idealizada conforme seus preconceitos, não sabendo lidar com uma esposa de carne e osso que não corresponda às expectativas, a não ser tomando as ‘medidas corretivas’ que os homens de seu tempo julgavam a mais adequada: confinar ‘a louca’ para o resto da vida, embrutece-la e aliená-la de si mesma e do mundo trancada em um quarto minúsculo de sua mansão.
As mulheres, ele deveria saber, não são clínicas de reabilitação. Com um passado sombrio atrás de si, ele quer uma segunda chance a qual não merece. Se encanta por Jane Eyre, mas antes de enxergá-la como uma pessoa autônoma, com ideias, inteligência e vontade próprias, tratando-a com igualdade e respeito – que é o que ela deseja -, ele a vê como uma ave rara e frágil, confunde a compleição mignon da moça com fraqueza de espírito.
A sensação que eu tenho é que Rochester vê em Jane a antítese das outras mulheres com quem se envolveu porque ele morre de medo de encontrar alguém que o desafie de verdade. Ele acredita, em seu delírio romântico de adolescente tardio, que é o protetor de Jane, quando na verdade abusa de algumas das vulnerabilidades da garota, principalmente da econômica no começo do envolvimento dos dois. Os embates intelectuais entre eles são uma concessão que o senhor faz para divertir-se com a criada e para se sobressair. É por vaidade que ele desafia Jane a enfrentá-lo intelectualmente, não porque deseje de fato compartilhar com ela a experiência de seus vinte anos a mais de vida. Qualquer semelhança com os machistas contemporâneos não é mera coincidência.
Mesmo depois que sofre revezes do destino e passa a se comportar de maneira mais dócil e, aparentemente submissa, em suas lamúrias, o Sr. Rochester ainda transparece o antigo desejo de aprisionar Jane. Ela alcança a tão sonhada independência econômica – depender financeiramente dos maridos era um fator que inferiorizava as mulheres em 1847 e que ainda mantém muitas reféns de relações abusivas nos dias atuais -, mas infelizmente, ainda é presa à dependência emocional. O que ele chama de amor não engana ao olhar mais atento, pois é revestido por camadas nem sempre sutis de chantagem e manipulação. Ciumento, passional, orgulhoso, mesmo que fragilizado, ele ainda se esforça para controlar a protagonista. E faz isso dando a ela a ilusão de que está no comando de si mesma e do relacionamento dos dois.
St. John, um primo que a nossa heroína só encontra depois de adulta, é mais jovem que Rochester na idade, mas age de maneira ainda mais arcaica. Clérigo da igreja anglicana, ele tem uma personalidade fria, ‘uma face de mármore’, como a prima o descreve. O que ele quer é alguém para moldar e transformar no ideal de criatura abnegada e pia que ele – imbuído de milhares de preconceitos de gênero – acredita que ‘toda mulher cristã’ deve ser. A descrição desse personagem dá arrepios. Ele é sádico, masoquista, tirânico, o típico ‘homem de Deus’ que usa a religião e a fé para atormentar, ameaçar e inferiorizar as pessoas. Ainda assim, Jane vê bondade nele e vê sentimentos nobres onde só existe mesquinharia.
St. John, como muitos missionários do século XIX, anseia em ir para o Oriente e para a África ‘converter os infiéis’ e ‘civilizar os bárbaros’. Ele se sente o carregador mais diligente do ‘fardo do homem branco’. Convencido de ser superior por ser europeu e cristão, é por essa régua que ele mede o mundo e as outras pessoas, incluindo a prima. Oferece sua mão à Jane como se fosse um favor que faz a ela, como se a salvação da jovem dependesse do seu ato de benevolência e assim, a menospreza.
Desejo de liberdade, mas nem tanto
Jane Eyre é órfã e foi criada por uma tia que não gosta dela e que a envia para um colégio interno dirigido por outro clérigo despótico e corrupto. Ela tem as sementes de uma natureza libertária, um desejo de independência e uma mente afiada. Atenta à realidade ao seu redor, questiona as injustiças, se ressente do lugar irrelevante ocupado pelas mulheres, se magoa pela falta de cumplicidade do seu próprio gênero. Ainda assim, é moldada pelo seu tempo e carrega muitos dos preconceitos aristocráticos. Embora vivendo de favor na casa da tia após perder os pais ainda muito pequena, pertence a esse mundo da nobreza indolente e de nariz empinado de uma Grã-Bretanha ainda muito rural e puritana.
Por ter uma enorme carência afetiva, com frequência, cai na tentação de ceder ao domínio de Rochester ou de St. John. Ainda tenho minhas dúvidas se de fato ela não faz sacrifícios demais, típicos das mulheres de gerações anteriores, mas que ainda encontram eco em muitas na atualidade. Infelizmente, em certos momentos, ela se presta ao papel de grande salvadora, de bálsamo curativo e da abnegada amante que aceita conviver com os defeitos irreconciliáveis de seu atormentado amado em nome de preservar o orgulho masculino ferido e de colar os caquinhos de uma virilidade nefasta.
A protagonista do romance homônimo de Charlotte Brönte é muito jovem, passa por muitas adversidades, precisa começar a se defender desde muito criança das vilanias da vida; e, por isso, ainda tateia para firmar a própria identidade, daí ser compreensível esses escorregões e essa necessidade de apoiar-se em figuras masculinas persuasivas, arrogantes e de ares nobres; embora, pessoalmente, eu acredite que pelo filtro inexperiente de Jane, a crença na nobreza dos seus pretendentes é uma ilusão.
Não dá para definir a heroína de Charlotte Brontë como uma moça feminista na acepção contemporânea da palavra, embora ela seja uma exceção à maioria das heroínas dos romances ambientados na mesma época. A luta histórica das mulheres por respeito, segurança e pelo reconhecimento da igualdade de direitos ainda era muito pontual nos tempos de Charlotte, mas a autora é pioneira junto com outras escritoras, em abordar temas que poucas mulheres de carne e osso que viveram nos anos 1800 podiam questionar.
Jane é capaz de perceber que existe alguma coisa muito errada em um mundo onde metade da população é oprimida pela outra metade e que essa opressão tem legitimidade na religião cristã e em dogmas que afirmam que Eva seria inferior e submissa ao companheiro Adão. Mas, como foi criada dentro de preceitos cristãos, a jovem não deixa de seguir normas e códigos morais, religiosos e sociais que a condenam por seu gênero.
Charlotte Brontë era a filha de um clérigo e também, mais tarde, casada com um homem da religião. Em seu romance, que possui aspectos autobiográficos e as inquietações que a atormentavam enquanto mulher em um mundo de homens, a atmosfera meio carola é inevitável. Os diálogos criados pela autora são maravilhosos, mas todos sublinhados por referências bíblicas e metáforas religiosas, embora também marcados por citações de filósofos e escritores, demonstrando sua erudição.
Como Jane não tem mãe e não encontra muitas outras mulheres que funcionem como suas mentoras – na escola tem a Srta. Temple, que é quem melhor cumpre o ancestral papel da mulher mais velha que é o espelho e a primeira orientação da menina -; e como o mundo e o tempo em que ela vive é moldado pela ação masculina, com as mulheres ocupando posições subalternas de governantas, empregadas e camponesas; ou de cobiçadas beldades – e viver da beleza para adquirir status também é submissão -, a jornada dessa heroína oitocentista é árdua, desafiadora e solitária. Também entrecruzada pelos perigos que assombram as mulheres há séculos, com as violências física, sexual e psicológica entre os principais riscos.
Romance, tragédia e atmosfera sombria
As concessões que Charlotte Brontë faz à eterna busca por amor de sua personagem, com doses generosas de sofrimento no processo, fazem parte do espírito da época em que Jane Eyre foi publicado pela primeira vez. A rainha Vitória governava há 10 anos quando o livro chegou ao mercado, inicialmente assinado por Currer Bell, pseudônimo de gênero indefinido que a autora adotou para disfarçar o fato de ser uma mulher, justamente porque as editoras não valorizavam obras escritas por mulheres. O romantismo enquanto gênero literário também era criação dos primeiros anos do século XIX. Logo, essa atmosfera da era vitoriana, com sua carga romântica e depressiva temperada pelo gótico, perpassam todo o livro, que é opressivo e, ao mesmo tempo, extremamente lírico.
Sem precisar apelar para muitos eventos sobrenaturais, outra das paixões do romantismo enquanto expressão artística, Charlotte Brontë, ainda assim, descreve cenários e situações de gelar o sangue em Jane Eyre. Mas, nem tanto como sua irmã Emilly Brontë, a autora do magistral e soturno O morro dos ventos uivantes, história sobre um relacionamento tóxico e abusivo com um esperado desfecho trágico. O fato das duas irmãs terem escrito sobre os abusos sofridos pelas mulheres de seu tempo só demonstra o quanto elas estavam atentas à realidade que as cercava. Além disso, a própria trajetória da família Brontë, onde as tragédias se sucederam com o passar dos anos, é material farto para suas histórias inquietantes.
Infelizmente, no tempo das irmãs Brontë, as relações doentias eram confundidas com uma espécie de amor desesperado. Aos olhos de hoje, suas histórias, de certa forma, por mais que fossem pioneiras em retratar um lado mais perverso das relações de gênero, por exemplo, do que as que aparecem nos romances de Jane Austen; ainda assim, ao mesmo tempo que denunciam, também romantizam abusos sistemáticos que os homens praticavam – e ainda praticam – contra as mulheres.
Por tudo isso, se me perguntarem, direi que Jane Eyre é um livro que merece ser lido, por sua importância para a literatura, pelos muitos insights visionários de sua autora, pela qualidade da narrativa, que é primorosa e cativante, prendendo a atenção do início ao fim; mas que também tem de ser discutido. O livro tem as qualidades imortais de um clássico e estimula muita reflexão. Mas, mesmo lido dentro do contexto de seu tempo, é preciso que seja analisado de forma crítica. Não dá para ‘passar pano’ para Rochester ou St. John, porque ignorar o que esses homens são capazes de fazer está no cerne do machismo que ainda perdura. Também não dá para olhar para a jovem e destemida Jane sem lamentar muitas de suas atitudes, mesmo ela sendo uma heroína apaixonante.

Minha edição
A edição de Jane Eyre que eu li foi um presente que recebi em 2019 de um amigo jornalista como eu e tão apaixonado por livros quanto… É da coleção Clássicos Zahar. Extremamente bem feita, em capa dura, bem revisada e editada com esmero, essa versão – que respeita o texto original na íntegra – foi lançada em 2018. Tem ilustrações fascinantes, notas de rodapé que facilitam a contextualização, assinadas por Bruno Gambarotto, e também um artigo de apresentação da escritora e roteirista Antonia Pellegrino. Essa introdução, que entre outras coisas lista as adaptações cinematográficas mais importantes do livro, já cria todo um clima de fascínio para o leitor se jogar nas mais de 500 páginas do romance. Como extras, a edição traz ainda o prefácio escrito por Charlotte Brontë para a segunda edição do livro – onde ela, além de agradecer aos seus editores, aos leitores e a parte da imprensa, também destila mágoa contra as críticas preconceituosas feitas à sua história e aos personagens -; e uma cronologia dos fatos mais importantes da vida da autora.
Ficha Técnica:
Jane Eyre
Autora: Charlotte Brontë
Tradução: Adriana Lisboa
Editora: Zahar
Ano: 2018
535 páginas
R$ 60,90 (livro em papel) e R$ 39,90 (ebook)*
*Pesquisado em 23/01/2020 nos sites Amazon, Submarino e Americanas
Pingback: Resenha: Vasto mar de sargaços (Jean Rhys) – Mar de Histórias