Resenha (ou quase isso): Laranja Mecânica

Uma catarse tão profunda quanto a Nona Sinfonia

Laranja Mecânica é um soco na cara. Um corte profundo de uma navalha afiada. É sangue no olho… Enquanto lia o livro, marcava na rede de bibliófilos Skoob o andamento da minha leitura. Geralmente, apenas marco as páginas lidas, sem comentários prévios, sem dar notas (no caso da rede, estrelas) antes de concluir. Não gosto de comentar um livro sem terminá-lo. É superstição, só falo a respeito depois que leio da orelha ao posfácio. Um dos integrantes do Skoob me mandou mensagem quando marquei ter ultrapassado a página 68: ‘Agora é a hora que você vai começar a detestar o livro’. Essa resenha em primeiríssima pessoa é uma resposta a esse comentário (ou provocação)…

Laranja Mecânica, como ia dizendo ali acima, é um soco na cara (e um chute nos rins). Um corte profundo de navalha afiada, do tipo que abre a carne em duas. É sangue no olho e no nariz. Escrito há 58 anos (o exemplar que li é essa preciosidade da Aleph lançada nos 50 anos da obra, em 2012, e que minha irmã tem entre sua vasta e maravilhosa coleção de livros), é até clichê chamá-lo de atual, mas ele completa o panteão das distopias clássicas com a mesma atualidade profética.

Anthony Burgess é tão visionário quanto Orwell, Huxley, Bradbury. E não tem como ser de outra forma, porque Laranja Mecânica é o irmão mais novo – e, sem dúvida, muito mais perverso – de Admirável Mundo Novo (1932), de 1984 (1949) e de Fahrenheit 451 (1953). Assim como seus predecessores, o tema central é a opressão de um estado totalitário e a negação do indivíduo em detrimento de uma coletividade amorfa.

Não existe um herói em Laranja Mecânica. O protagonista está muito aquém do heroísmo e até mesmo do anti-heroísmo. O narrador e protagonista da história, Alex, um adolescente de 15 anos, é um amálgama esquizofrênico de algoz e de vítima do sistema. Cruel, arrogante, violento e agressivo em níveis inimagináveis, ele é a faca enfiada nas costas de uma sociedade apática e que se submete a uma ditadura por pura preguiça de reagir. Alex se considera um flagelo divino, com seu idioma próprio (a gíria natsat – adolescente – criada por Burgess) e o gosto refinado por música clássica, principalmente por Bethoveen. Mas é, na verdade, uma criança sem limites e capaz de causar danos irreversíveis. É um dos personagens mais intrigantes da literatura. Impossível de amar e também muito difícil de odiar pura e simplesmente.

A história do livro – e quem já assistiu ao filme de 1971 de Stanley Kubrick não pode reclamar de spoiler – é sobre uma gangue de adolescentes delinquentes que, em uma metrópole sem nome – Burgess, embora seja britânico, não diz onde a narrativa se passa – aterroriza os moradores cometendo atos de maldade primitiva e brutal. Até que em uma dessas noites de crueldade, Alex é preso e, após dois anos em uma penitenciária – ele já havia entrado e saído de reformatórios antes – é mandado para ser cobaia em uma experiência que promete aniquilar toda a sua brutalidade e sadismo…

O autor discute os limites do livre-arbítrio e da intervenção policial enquanto ‘corretivo’ para a delinquência. Durante a leitura, lembrei do episódio ‘Urso Branco’, da aclamada série britânica ‘Black Mirror’ (e aqui vale ressaltar que dos quatro autores de distopias citadas nesse texto, três são britânicos. Ray Bradbury é norte-americano). Urso Branco tem um roteiro que possivelmente se inspirou em Laranja Mecânica. Ou pelo menos na premissa de Burgess: o quanto o poder constituído pode se tornar cruel na sua tentativa de eliminar a crueldade do mundo?

Durante a leitura, encontramos a resposta para a pergunta sobre a maldade associada ao poder. E formulamos muitas outras sobre a natureza do bem e do mal e sobre os efeitos do condicionamento social na natureza humana. Até que ponto as pessoas são boas por terem boa índole ou apenas porque existe punição para a maldade? Até que ponto o leitor é influenciado pelo narrador que também é o protagonista da história e como isso atrapalha seu julgamento sobre o caráter de Alex e de todos os outros personagens descritos sempre pela ótica dele?

Anthony Burgess convida o leitor para uma imersão total e profunda em Laranja Mecânica, inclusive usando a linguagem. Alex escreve como fala, em natsat. As gírias desconhecidas para os adultos do livro e também para o leitor, ditam o ritmo da fruição da história e, assim como acontece com a música escutada por quem não tem formação musical mas tem sensibilidade para ouvir os acordes se unindo, de repente, poucas páginas depois do início, tudo faz sentido, se encaixa em orquestração perfeita.

Nessa edição especial dos 50 anos de Laranja Mecânica, a Aleph recupera o texto original do livro e preserva a intenção de Burgess, de criar sentido mesmo entre palavras inicialmente estranhas. O tradutor dessa edição, Fábio Fernandes, inclusive, assina um texto de abertura explicando as complexidade de transpor o natsat para o português. Um aperitivo que aguça a curiosidade e a sede do leitor.

Além desse artigo inicial sobre a tradução e de um prefácio que contextualiza a importância do livro para a cultura pop, o cinema, a moda e o comportamento de gerações, a edição cuidadosa também traz artigos assinados pelo próprio Burgess explicando Laranja Mecânica, logo após Alex colocar um ponto final na sua narrativa. Esses textos ajudam o leitor a imergir ainda mais no universo da obra e do autor.

Completam a preciosidade da edição os desenhos de Dave MCKean, Oscar Grillo e Angeli reproduzindo passagens da história; e o resgate de trechos do manuscrito em inglês e dos desenhos do autor. Item de colecionador, sem dúvida, mas que não tivesse a história a força que tem, esses anexos seriam apenas perfumarias.

Laranja Mecânica é um soco na cara (e um chute nos rins). Um corte profundo de navalha afiada, do tipo que abre a carne em duas. É sangue no olho e no nariz. É encarar a maldade em toda a sua fúria e frieza. É incômodo e assustador, sobretudo para as leitoras. É uma febre. Uma descida ao inferno, uma dor que lateja e não deixa dormir e uma catarse tão profunda quanto a Nona Sinfonia.

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Um trecho:

“Mas, irmãos, esse negócio de ficar roendo as unhas dos dedos do pé sobre qual é a causa da maldade é que me torna um maltchik risonho. Eles não procuram saber qual a causa da bondade, então por que ir à outra loja? Se os plebeus são bons é porque eles gostam, e eu jamais iria interferir com seus prazeres, e o mesmo vale para a outra loja. E eu frequento a outra loja. E mais: maldade vem de dentro, do eu, de mim ou de você totalmente odinokis, e esse eu é criado pelo velho Bog ou Deus, e é seu grande orgulho e radostia. Mas o não eu não pode ter o mau, quer dizer, eles lá do governo e os juízes e as escolas não conseguem permitir o mau porque não conseguem permitir o eu. E não é a nossa história moderna, meus irmãos, a história de bravos eus malenks combatendo essas grandes máquinas? Estou falando sério sobre isso com vocês, irmãos. Mas eu faço o que faço porque gosto de fazer”

(Anthony Burgess, ‘Laranja Mecânica’, pág 89, Editora Aleph, 2012, São Paulo – SP).

Ficha Técnica:

Laranja Mecânica

Autor: Anthony Burgess

Tradução: Fábio Fernandes

Editora: Aleph

352 páginas

R$ 56,93 (Amazon em 25/07/2020)

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