Pipocam na minha caixa de entrada e-mails de publicidade de lojas divulgando máscaras de proteção de variadas cores e estampas. Essas da foto, ganhei de presente em duas ocasiões diferentes da mesma pandemia nossa de cada dia. A gente se adapta, mas isso não é ‘normal’.
Tampouco é ‘nova’ a capacidade do ser humano de sobreviver às piores misérias. As duas grandes guerras mundiais, os tsunamis na Indonésia e no Japão e o terremoto no Haiti estão aí para provar que as pessoas encontram um jeito. Umas com mais conforto, outras com bem menos. Muitas saem na penúria completa das situações de calamidade, tantas outras lucram.
A expressão ‘novo normal’, modinha lançada por uma revista que vende produtos para o consumo de quem lucra com a pandemia – ou então sequer precisa se preocupar com a data do pagamento da nova parcela do auxílio emergencial -, é uma confusão semântica da sociedade de consumo para iludir os incautos.
Vejam bem, para vender, para aquecer a economia, para manter a roda girando e fazer as pessoas gastarem seus salários reduzidos entre 25% a 70% pela Medida Provisória do governo – quando a pessoa tem sorte de ter redução e não suspensão do contrato – é preciso dizer a elas o tempo todo que ‘está tudo bem’, que ‘não há com o que se preocupar’, que ‘todos sairemos dessa mais sábios, mais iluminados e solidários’…
Não se engane com os coaches, governantes, celebridades e veículos de comunicação que nos empurram goela abaixo o ‘novo normal’. Uma coisa é alguém sobreviver minimamente saudável a essa situação tenebrosa, e para isso todo mundo devia ter direito à sua cota de boas leituras, maratona de séries, aconchego de pets e outros amores… Mas, infelizmente, muita gente não tem nada disso à mão. Outra totalmente diferente é tratar as micro estratégias que as pessoas usam para não enlouquecer confinadas em casa há quase cinco meses como normalidade.
Pega-se aquela capacidade ancestral do ser humano de se adaptar a qualquer intempérie, desde que inventou de descer das árvores lá na origem dos tempos, e transforma-se isso em uma nova marca: ‘novo normal’. Não importa se a normalização aí é a da morte de milhares de pessoas (72,1 mil no Brasil até a noite deste domingo, 12, segundo o Ministério da Saúde). Ninguém liga se o ‘estamos todos bem’ significa uma rotina de lives – umas muito boas, outras dispensáveis – e interação com gente querida que mora a um bairro de distância apenas virtualmente, pelo próprio bem da saúde delas, da sua e da coletividade.
Para que escrever esse ‘textão’ amargo, se agora a nova ordem mundial é trazer o trabalho para dentro de casa e perder completamente aquele restinho de sensação de liberdade que nos aliviava o peito a cada vez que a ‘malinha de perrengues’ do escritório ficava debaixo da estação de trabalho a cada fim de expediente, para ser resgatada só no dia seguinte, das 8h às 18h?
Chamar a rotina atual com a qual tivemos de nos resignar de ‘normal’ é coisa de gente muito anormal, muito mesquinha, muito maldosa e muito sem noção, para ficar só nos adjetivos publicáveis.
É mesmo, de verdade, pense aí com bem calma na questão, normal as crianças terem de assistir aulas desgastantes via internet, enquanto seus professores, do dia para a noite, precisaram aprender a lidar com uma audiência que ultrapassa os alunos na sala de aula e agora envolve os pais, os avós e os tios assistindo cada vídeo com um olhar inquisidor? Minha irmã chamou minha atenção essa semana para esse fato.
É normal sair de casa vestindo máscara de proteção e escudo facial para evitar se contaminar com um vírus para o qual a ciência ainda não descobriu vacina, remédio, cura, paliativo ou tratamento 100% eficaz?
É normal netos não poderem mais beijar/visitar os avós, amigos não se abraçarem e casais terem de adotar protocolos sanitários nos amassos?
Comércio, escolas, restaurantes, praias, parques e afins fechados há cinco meses não são o ‘novo normal’. Representam uma necessidade de vida ou de morte e sabe-se lá por quanto tempo ainda necessária.
A rotina de calamidade pública que vivemos agora – que nossos bisavós e trisavós viveram nas grandes guerras, que os refugiados em todo o mundo vivem há séculos – não é ‘normal’.
Viver em privação, como tantos milhões de pessoas vivem no mundo há séculos, não é ‘normal’; embora na vida pré-pandemia a gente mal se desse conta disso, imersos nas nossas vidinhas que estávamos.
Entendo o desejo das pessoas de encontrarem um porto seguro no meio de tantas incertezas e perdas. Tenho empatia por quem não lida legal com o isolamento, porque ninguém é obrigado a se adaptar da mesma forma e as pessoas têm maneiras diferentes de experimentarem a solidão e as dificuldades em geral. Mas não aceito que chamem a isso de ‘novo normal’.
Vivemos dias diferentes de tudo o que a humanidade já viu. E também vivemos dias muito iguais aos que uma parte considerável do planeta enfrenta sem que a outra parte perceba. Enquanto quem pode está em casa resguardado, tem milhares de pessoas que precisam sair todos os dias para trabalhar porque não existe home office possível no caso delas. E o risco que elas correm não é algo a ser menosprezado…