Resenha: Não encontrei o passado, tenho que voltar (José Carlos Mello)

Quanto mais velhos, mais o passado assombra a memória. E quando o novelo dos tempos idos é desfiado com a ajuda de um amigo que já morreu, fica a incômoda sensação de que as lembranças trazem seu quinhão de acerto de contas. E é para acertar as contas com as sequelas da infância que o matemático Archibaldo, protagonista de Não encontrei o passado, tenho que voltar (Octavo, 2019), decide retirar do limbo a história de seu meio-irmão mais velho, Adamastor, e, por tabela, a sua própria. 

Em seu novo livro, que flerta com o realismo fantástico, o escritor José Carlos Mello resgata Pedro C. (de As dez vidas do senhor Cardano, também já lido e resenhado aqui no blog) para que ele, diretamente do Hades, sirva de arauto para uma notícia que inquieta Archibaldo e abre velhas feridas no solteirão beirando a misantropia.

Pedro C., amigo de infância de Archibaldo, aparece para o velho professor durante um passeio de rotina e lhe conta que seu meio-irmão, há muito sumido no mundo, retornou a Porto Alegre (RS), cidade onde se passa a maior parte da história, e está vivendo no peculiar Hotel Versailles, cenário e personagem onipresente do livro. 

Com seus hóspedes de biografias distintas (como um boêmio incorrigível, uma professora pudica, um ex-militante comunista, um antigo diplomata e um ex-torturador); além da gerente descendente de nazistas, o Versailles é uma mistura de pensão e casa de repouso para idosos. A convivência dos moradores, que podia ser um barril de pólvora pelas mágoas e oposições ideológicas, explode é nas mesquinharias do envelhecimento.

A partir da descoberta do paradeiro de Adamastor, o matemático começa a visitar o irmão, um físico meio excêntrico, beirando os 90 anos e obcecado em desvendar seu misterioso nascimento nas primeiras décadas do século XX, um tema tabu para a família paterna. As visitas, pouco a pouco, promovem transformações na rotina e na personalidade de Archibaldo, que até então vivia recluso e sofria de crises de pânico. 

Na medida em que Adamastor se perde nos labirintos da memória e de uma doença senil – que embora não seja nomeada pelo autor, se assemelha ao Mal de Alzheimer -, Archibaldo inicia sua própria ‘jornada do herói’, permitindo-se abandonar os temores herdados da infância e desabrochar para a vida com quase 80 anos. 

A descoberta das novidades modernas pelo velho matemático, um homem que se acomodou a vida inteira ao mesmo cargo, aos mesmos presentes de Natal trocados com desinteresse com dois ex-colegas de faculdade, e à mesma rotina, rendem trechos divertidos e pontuados por tiradas críticas do personagem. Archibaldo é uma criança velha, oscilando entre ingenuidade e sarcasmo diante de um mundo que faz cada vez menos sentido.

O Brasil das primeiras décadas do século XX, com seus preconceitos, normas sociais e educação rígida, é o tecido onde o autor costura a história dos dois irmãos.  A narrativa começa nos anos que antecedem o Estado Novo, avança pelo período da ditadura instaurada por Getúlio Vargas, passa pela II Guerra Mundial… e chega até o século XXI, mas sem didatismo, porque o interesse do autor é fazer crônica social e de costumes, mostrando as reações das pessoas aos eventos de cada década. 

Mais uma vez, assim como fez em As dez vidas do senhor Cardano, José Carlos Mello brinda o leitor com uma visão acurada dos hábitos e modos de vida das gerações passadas, narradas com um humor agridoce e tragicômico. Adamastor e Archibaldo, se por um lado são sobreviventes de uma geração criada na ignorância e nos preconceitos de pais, familiares, religiosos, professores e vizinhos; por outro, conseguiram recriar para si trajetórias bem menos melancólicas do que suas origens prometiam. 

Existe ironia nas lentes com as quais Archibaldo enxerga o próprio passado e o do irmão, mas existe também uma certa nostalgia e, principalmente, uma certeza de que cada um é fruto da própria história, mas nem sempre – muito menos pelo resto da vida – precisa ser definido por ela…

Ficha Técnica: 

Não encontrei o passado, tenho que voltar

Autor: José Carlos Mello

Editora: Octavo

240 páginas

*R$ 54,46 (capa comum) e R$ 24,99 (e-book)

*Pesquisado na Amazon em 26/10/2019

 

4 pensamentos sobre “Resenha: Não encontrei o passado, tenho que voltar (José Carlos Mello)

  1. Andreia, como sempre, generosa em seus comentários. Abraços e bom domingo na nossa Salvador, onde vivi o meu primeiro mes de vida. Mello
    ________________________________

  2. Mais uma obra bem escrita, profunda e plena de humanidade distribuida de forma
    bem dosada pelos tipos humanos que atormentam as memorias deste autor genial que é José Carlos Mello

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