O português falado no Brasil, tão peculiar em comparação com o modo de falar europeu e dos demais países lusófonos, embora tenha muita mistura, não foi uma língua consolidada pacificamente. Ao menos essa é a conclusão da leitura de Muitas línguas, uma língua: A trajetória do português do Brasil, obra do escritor e filólogo Domício Proença Filho, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras.
De forma didática e ao mesmo tempo com narrativa empolgante, o livro desvenda a epopeia da colonização a partir da consolidação da língua portuguesa nas mesclas do idioma trazido pelos lusos com as línguas faladas por indígenas e negros, com a contribuição – embora em menor escala, como ressalta o autor – das falas dos imigrantes estrangeiros que aportaram no Brasil entre os séculos XVI e XIX.
Uma língua mestiça que nasce na base da força, banhada no sangue de índios e africanos; moldada de forma impositiva pela doutrinação dos padres da Companhia de Jesus – foram os jesuítas que criaram uma sistematização e uma gramática para o Tupi -; imposta no fio da espada dos soldados de homens como Mem de Sá, o governador-geral que pacificou a recém-nascida capital da colônia e dizimou aldeias inteiras; que avançou território adentro no trote das montarias dos bandeirantes e tropeiros; que se suavizou a partir do desejo de uma literatura nacional que traduzisse as cores e as angústias de um povo complexo desde sua origem e que, no alvorecer do século XXI, se atualiza em gírias disseminadas nas redes sociais.
O livro, embora focado na história da língua, também pode ser lido como um ensaio sobre a identidade multifacetada do povo brasileiro, de uma forma que, ao mesmo tempo em que nos mostra os aspectos positivos da riqueza de culturas que formam o país, não deixa de ser crítico à forma violenta como essa mistura se deu.
Referências
Muitas línguas, uma língua… é uma riqueza em termos de exemplos da evolução do português, pois traz diversos textos comparativos, desde a carta de Pero Vaz de Caminha até letras de cantigas africanas, lendas indígenas, poemas, trechos de romances, peças de teatro e notícias de jornais de distintas épocas. Também é uma boa referência para amantes de História, pois o autor traça paralelos entre a construção do nosso idioma e momentos marcantes como a destruição do Quilombo de Palmares, a chegada da família real portuguesa em 1808 e a construção de Brasília.
Voltado para estudantes de Letras e também para interessados em história, literatura, linguística e gramática, Muitas línguas, uma língua… revela curiosidades como o fato de existirem cidades brasileiras, ainda hoje, que possuem mais de um idioma oficial. Nos conta ainda que lá nas origens do nosso idioma, nos primeiros contatos entre os lusos e os índios, e entre lusos, índios e africanos, foram criadas algumas ‘línguas gerais’ que misturavam diversas variações do tupi-guarani com o português e com as línguas trazidas por bantos e iorubás escravizados. No Amazonas dos dias atuais ainda existem pessoas falantes de algumas dessas ‘línguas gerais’.
Para completar, o livro também traz uma valiosa bibliografia e está recheado de notas com explicações extras, para quem quiser se aprofundar nos estudos do tema. Alguns trechos, que utilizam o português arcaico, são de difícil leitura, mas nada que torne cansativa e enfadonha a apreciação da obra.
O autor é ainda bem cuidadoso ao apresentar os debates em torno da consolidação do idioma, sem tomar partido e mostrando todos os lados de polêmicas como a proposta de mudar o nome da variante de português falada no Brasil para ‘Língua Brasileira’; ou as idas e vindas da reforma ortográfica acordada pelos países lusófonos, desde as primeiras tentativas de aprovação nos anos 1990 até ela vigorar no país, a partir de 2009, com todas as etapas de adaptação que foram necessárias.
Interessante ainda é o panorama que Domício Proença Filho apresenta do processo de educação no Brasil. Desde as primeiras escolas fundadas pelos jesuítas até a regulamentação do ensino público e gratuito, o autor passeia por todas as discussões, leis e normas regulatórias que moldaram o ensino do português, em sua forma culta, nas unidades de ensino do país. Daí que para educadores, o livro também é valioso.
Embora possa ser lido de uma vez, como um romance sobre as aventuras e desventuras de um povo na consolidação de sua língua oficial e de sua identidade como nação, este é um livro que deve ser preservado para consultas frequentes, pois há em suas páginas um aprendizado que não se esgota em uma única leitura.
Trechos do livro para dar um gostinho:
“Mem de Sá, desembargador, ‘sábio nas letras legais’, é nomeado governador-geral em 1557. Assume com missão pacificadora e sem mandato fixo: o tempo de seu governo é o tempo de sua vontade e se estende por 15 anos. Entre as instâncias comunitárias ao tempo de seu governo, ele promove a eliminação dos abusos, domina à força a rebeldia dos silvícolas. Em paralelo, dá seguimento à conversão pela mão dos jesuítas e à organização em aldeias por estes comandadas. No curso do seu mandato dizimam-se indígenas caçados em tribos e aldeados em missões. De 12 mil numa delas, para citar um exemplo, configura-se a rápida redução a apenas mil. Muitos índios são ceifados também por graves epidemias. Entre elas, a de varíola, de 1562 a 1563, que não atinge os lusitanos e elimina mais de 30 mil indivíduos, entre indígenas e negros. Novo surto mata um quarto da população de índios sobreviventes. Só nas terras da Bahia perecem 70 mil. É de imaginar o impacto do extermínio no contingente de usuários das línguas em que se comunicavam.”
(Muitas línguas, uma língua. Domício Proença Filho, Ed. José Olympio, pág. 64)
(…)
“Em relação ao processo de formação, predomina, na primeira metade do século XIX, a tese de que o português brasileiro resultaria de uma evolução natural do português de Portugal. É a teoria evolucionista. Ocorreria com o idioma, portanto, o mesmo que ocorre com a evolução das espécies. Para os biologistas, as línguas nascem, crescem, desenvolvem-se, morrem. No processo evolutivo do português no Brasil, um fator de relevância seria um dado novo: a influência das línguas indígenas e africanas. O posicionamento termina por não se sustentar, diante de um entendimento posterior e consensual: quem faz a língua é a sociedade que dela se vale. A língua é um fato social. Sua configuração obedece à dinâmica do tempo. Decorre, como explicita Edith Pimentel Pinto, da sua utilização pelo falante, marcada de alterações de imediato imperceptíveis. Tais mudanças é que conduzem a variedades de natureza social e geográfica, vinculadas diretamente à faixa etária, ao grau de educação, à profissão, à classe social.”
(Muitas línguas, uma língua. Domício Proença Filho, Ed. José Olympio, pág. 322)
Ficha Técnica:
Autor: Domício Proença Filho
Editora: José Olympio/Grupo Editorial Record
672 páginas
R$ 55,90 (Pesquisa no site da Saraiva em 28/01/2019)