Dona Val viajava sentada ao meu lado, na cadeira do corredor, e a amiga com quem batia papo, estava de pé, perto dela. Gosto de ficar observando a vida passar pela janela, mas mantenho as antenas ligadas, captando as conversas alheias. É vício de repórter com mania de escritora. Porque filosofia de *buzu rende crônica, tese, livro e até esquete cômica. Ou, no mínimo, diverte as amizades na internet.
Os temas do papo das duas era o custo de vida, mercado, contas, desemprego, as filhas de vinte e um anos, relacionamentos, as dificuldades do dia a dia e mais um monte de outras coisas. Dona Val tem aquela voz rouca típica de fumante e também cheira a cigarro. Me lembrou as vizinhas suburbanas da infância, pela forma despachada de falar, pelo tom meio estridente, o jeito de posicionar o corpo e gesticular, uma mistura típica de desafio e resignação, que só quem conhece as periferias de Salvador entende.
Em 40 minutos de viagem e a indiscrição mal disfarçada de quem está escutando a conversa alheia sem o menor pudor (e juro que estava quase me metendo no papo), fiquei sabendo detalhes da vida de dona Val. Criou quatro filhos (um adotivo, como fez questão de frisar), está no segundo casamento – “porque o primeiro era um traste, minha filha” – e, segundo ela mesma, depois dos 50, aprendeu a dizer não para quem quer explorá-la, “achando que sou besta!”
– Dos meus filhos mesmo, não como reggae. Amo meus netos, mas esse negócio de deixar menino de férias hospedado com vovó enquanto os pais vão pra farra não é comigo. Só fico oito dias, se a mãe ou pai não vem buscar, não perco tempo, mudo a roupa e vou despachar a malinha na porta de quem é de direito. Já criei quatro. Aprendi com Glória Pires, não sou obrigada a nada!.
Entre tiradas deliciosas sobre relacionamentos – “você larga o cara porque ele não presta, daí passa seis meses e ele quer voltar… e você acha que ele vai prestar agora? Pois fique sabendo que pau que nasce torto morre envergado. Não prestou de primeira, não tem segunda chance certa!” – e narrativas picantes da vida conjugal, dona Val aproveitou para acalmar o coraçãozinho da amiga endividada.
Me liguei na lição, porque jornalistas e dívidas são palavras quase sinônimas. Nunca se sabe quando a gente vai precisar apelar para a estratégia da economista de buzu. Para quem estiver precisando, segue o conselho:
– Não esquento a cabeça. Quando a conta chega e não tenho o dinheiro pra pagar, sabe o que eu faço? Chamo por Deus: “Pai é o seguinte, tá apertando muito aqui a situação, veja aí o que senhor pode fazer, amém”. E depois deixo a conta lá. Em alguma hora o dinheiro aparece e eu pago.
– Oxe dona Val, fico é com o juízo quente. Nem durmo direito…
– Nada abala meu sono, minha filha. Posso estar *’sem uma banda de conto no bolso’, mas na hora de dormir, deito e durmo feito um anjo. No dia seguinte, trabalho até o couro estourar. Mas preste atenção: a gente não fica rica se angustiando, entendeu? Tenho 55 anos, já trabalhei e ainda trabalho muito, mas não fiquei rica e acredito que a essa altura da vida não vou mais ficar. Então, o negócio é entregar pra Deus e pro tempo, um dos dois vai resolver…
Traduzindo o baianês para os leitores de outras paragens:
*Buzu = ônibus
*Sem uma banda de conto no bolso = sem dinheiro
“a gente não fica rica se angustiando, entendeu? ” – Quanta poesia cabe nessa frase…nessa conversa. Sempre digo que esse contato com as histórias de gente de verdade, nos ônibus, não há com que se pague. É delicioso, é instrutivo, é emocionante e é poético. Faz a gente sentir a vida acontecendo e a sabedoria que mora em cada um. Adoro seus textos :) bj.
Obrigada, Nayara :)