Resenha: Mary Poppins (P.L. Travers)

Mary Poppins é uma chata! E não digo isso para causar rebuliço à toa. Construí meu imaginário de fã da personagem através do filme da Disney, de 1964, protagonizado pela carismática e linda Julie Andrews. Sempre amei Mary Poppins, desde criança, e perdi a conta das vezes em que revi o filme depois de adulta. Mas, tenho de dar o braço a torcer, e após anos de expectativa para ler a ‘verdadeira’ Mary Poppins, de P. L. Travers, só me resta admitir que nesse caso, a Disney salvou a babá. Matando-a! A personagem de Andrews, tão peralta, doce, esfuziante, divertida, não guarda nenhuma semelhança com a criatura grosseira, esnobe e fútil de papel e tinta.

Estou frustrada porque em todos os meus anos de ‘traça de biblioteca’, com direito a carteirinha de ‘devoradora de livros nível máximo’, pela primeira vez encontrei uma obra adaptada em que a adaptação supera em anos luz o original. Infelizmente, o livro da autora australiana não me cativou. E não foi por falta de tentativa. Eu quis me apaixonar pela personagem, mas a coisa não fluiu. A leitura foi arrastada porque a história é arrastada.

Por que Mary Poppins é chata?

Primeiro porque ela não tem carisma. E nem dá para colocar a culpa no excesso de fofura de Julie Andrews, mesmo a concorrência, nesse caso, sendo dura. O problema é que a personagem do livro não engrena. A Mary Poppins literária não é nem a ‘gracinha’ do filme, nem a típica preceptora britânica. Se ela fosse uma governanta severa, com sotaque carregado e modos austeros, muito provavelmente eu teria gostado muito da personagem, porque ela teria consistência e autenticidade. Mas, ao abrir mão de criar uma caricatura das preceptoras de antigamente, P. L. Travers esvaziou sua protagonista, deixou-a no vácuo.

A Mary Poppins de P. L. Travers não pratica a austeridade e não deve nem saber o que é isso. Ela é tão vaidosa que beira a arrogância. E também não é severa no sentido de educadora rígida, como ditavam as regras da época vitoriana em que a história se passa. É uma mal-educada, faz grosserias gratuitas com as crianças de quem deveria cuidar, apenas para fazer-lhes pirraça. Mary Poppins é infantil de uma forma pejorativa, como uma adulta mimada que vive em função de ser bajulada e não aceita contrariedade. Se a função de Poppins é educar as crianças Banks, seus modos não são educativos nem pelos padrões de 83 anos atrás (o livro é de 1934) e nem pelos atuais.

As crianças não possuem voz na história, são apáticas, subestimadas e humilhadas pelas grosserias da babá. Ainda assim, desenvolvem uma dependência subserviente pela figura dela, que chega a irritar. Se no filme (e não tem como não comparar) a indiferença dos pais, tão preocupados com seus afazeres de adultos, é compensada pela preceptora amorosa e criativa, no livro é lastimável ver as crianças sendo arrastadas para cá e para lá pelas ruas de Londres por uma pessoa fútil que está mais preocupada com suas luvas, chapéu e sapatos do que com o bem estar delas. Mesmo sabendo que nos anos 1930 criança realmente não tinha nem metade dos direitos e do respeito de agora, ainda assim, o nível de descaso é impensável.

Não falo de cuidados domésticos como dar banho, alimentar, mandar dormir.  E nem quero Mary Poppins imbuída daquele ‘instinto materno’ de comercial de perfume no Dia das Mães. Mas falta afeto à personagem e não porque ela não é a rígida governanta vitoriana clássica, mas porque para mim, Mary parece incapaz de enxergar qualquer pessoa além de si mesma. A obsessão pelo próprio reflexo, em um jogo narcísico que a faz parar diante de todas as vitrines da cidade, é prova do quanto a personagem é autorreferenciada​ e egocêntrica.

Nem a mitologia salva

Diante da antipatia da protagonista, as situações fantásticas e até meio surreais da história, como fazer piquenique dentro de um quadro, comemorar o aniversário no zoológico com os humanos tomando o lugar dos bichos nas jaulas (uma bela metáfora que se perde no grande vazio da história), colar estrelas de papel no céu ou receber visitas de seres míticos, não causam encantamento ou abrem as portas do reino da fantasia. E olha que eu sou fascinada por contos de fadas e mitologia, então não é porque não sou criança que não capto a atmosfera mágica do livro, mas porque essa magia é forçada, não parece natural e crível, não enleva a alma nem de quem tem 8, 43 ou 80 anos.

Mary Poppins é tão rude e desagradável e os outros personagens do livro tão insossos e irrelevantes, que a história tem todos os elementos, mas não se realiza, fica só na promessa. E, com isso, perde a capacidade de fazer o leitor sonhar. Por mais que a autora force a barra, colocando espanto e admiração no olhar das crianças para com a sua babá misteriosa trazida pelo vento, o fato de Mary Poppins ser enjoada impede que o leitor  sinta empatia por ela ou por qualquer outro personagem e atrapalha o desenrolar da trama. Se a intenção era fazer de Poppins um ser elemental sujeito aos próprios caprichos, um espírito livre e indomável, P.L. Travers não obteve êxito.

Julie Andrews deu à Mary Poppins o carisma que, infelizmente, a personagem original do livro não tem

Posfácio generoso

No posfácio da edição que li, a especial dos 80 anos da obra, lançada pela Cosac e Naify, em 2014, a doutora em literatura Sandra Guardini T. Vasconcelos analisa Mary Poppins com lentes mais generosas do que o livro merece, na minha opinião, e situa a obra no contexto da tradição da literatura infantil e de fantasia britânica, citando obras de referência como Peter & Wendy, de J. M. Barry, e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll.

A pesquisadora compara Mary Poppins com a história de J. M. Barry, mas não consigo encontrar semelhanças entre as duas leituras, ao menos não até onde minha percepção dessas histórias alcança. Tenho a edição especial que a Cosac e Naify fez para Peter & Wendy, um livro absurdamente lindo para uma história fascinante, cativante e deliciosa, tudo o que Mary Poppins não é.

Além disso, não tem como comparar Poppins e Pan, justamente porque falta autenticidade à babá de P.L. Travers. Peter Pan é um gênio travesso, também arrogante, mas com uma doçura que seduz e fascina, ele é ‘o espírito da eterna juventude’, um pequeno deus fanfarrão, ele sim, um ser elemental legítimo, cheio de vaidades e caprichos, peraltices e leveza, a ponto de flutuar com pensamentos felizes… Mary Poppins não chega nem perto dessa leveza, infelizmente.

Também não dá para dizer que P.L. Travers se inspira na história caleidoscópica e nonsense de Lewis Carrol. Porque, ao menos nesse primeiro volume das aventuras de Mary Poppins, justamente o livro que apresenta a babá aos leitores, falta o charme dos personagens excêntricos do ‘País das Maravilhas’. Mary Poppins protagonizou diversas outras aventuras de P. L. Travers e não posso dizer se a personagem melhora nas continuações. Mas, nesse livro de estreia, ela é decepcionante.

Saving Mr. Banks

Li Mary Poppins depois de assistir ao filme com Tom Hanks e Emma Thompson, Saving Mr. Banks, traduzido no Brasil como Walter nos bastidores de Mary Poppins. O filme também é de 2014, foi lançado pegando carona nos 80 anos da personagem, e conta a história da negociação  de 20 anos entre Walt Disney e P. L. Travers para a adaptação do livro que resultou no filme clássico com Julie Andrews.

Cheio de licenças poéticas sobre a vida da autora e fazendo várias concessões ao mito Walt Disney, ainda assim, é um bom filme para quem gosta de entender os bastidores do cinema ou tem interesse em saber como a Disney se tornou a gigante que é. Tem uns trechos meio piegas, mas dá para relevar só pelo prazer de ver Emma Thompson muito bem como P. L. Travers.

A escritora vivida por Emma na tela é cheia de muxoxos e zero senso de humor. Se a autora real era assim (e nos créditos finais uma gravação original com a voz da autora insinua que ela não era fácil de lidar), pena que não fez de Mary Poppins o seu alter ego, porque aí sim, a babá seria uma personagem extremamente rica psicologicamente e não essa coisa oca e esquisita do livro.

A P. L. Travers de Emma Thompson é sarcástica, ácida, determinada, teimosa, questionadora, inteligente, não se deixa seduzir facilmente pelo Mickey ou pelo charme de seu criador; e, ao mesmo tempo, traz uma aura britânica de grande dama ultrajada. É fascinante de tão insuportável. Mary Poppins é só insuportável, sem fascínio.

Três estrelas pela saudosa Cosac

A edição especial de 80 anos da Cosac e Naify merece uma citação à parte, mesmo que atualmente tenha se tornado peça de colecionador, após o fechamento da editora. O livro é lindíssimo e as ilustrações do estilista Ronaldo Fraga são mais bacanas que a história em si. E só pelo cuidado editorial, dei três estrelas ao livro no ranking do Skoob, rede social de leitores. A história, me parte o coração admitir, merece uma estrela solitária.  E, ainda assim, nem é daquelas brilhantes e feitas com papel de embrulhar pão-de-ló…

Ficha Técnica:

Mary Poppins

Autora: P. L. Travers

Tradução: Joca Reiners Terran

Ilustrações: Ronaldo Fraga

Editora: Cosac Naify

*A edição da Cosac Naify está esgotada, mas existem diversas outras edições na Amazon, com preços que vão de modestos R$ 28,90 até chocantes R$ 280,00, no original em inglês, ou traduzidas (pesquisa em 22/05/2017)

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Um pensamento sobre “Resenha: Mary Poppins (P.L. Travers)

  1. Li o livro e achei a mesma coisa, uma babá sem sal, egocentrica e azeda.
    A história tinha tudo para ser sobrenatural, bucólica e saudosista. Com simples mudança na personalidade da babá insuportável.
    Fiquei feliz com a crítica que li, pois eu estava achando que não tinha entendido a trama.

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