Para aqueles que tem olhos de ver e ouvidos para escutar com atenção, as ruas de uma cidade como Salvador, antigas, estreitas, apinhadas e esquizofrênicas na sua mistura de passado colonial com modernidade tardia, oferecem muito material para filosofias profundas e ‘pensamentos supérfluos’. É entrar no ônibus, esteja ele vazio o suficiente para acomodar o corpo cansado ou cheio no modelo ‘lata de sardinhas’, e o balanço da viagem, se em alguns provoca torpor, em outros embala ideias, trechos de diálogos e digressões de todas as naturezas…
Nesse clima de jornada interminável nascem os textos de Pensamentos Supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo, livro de estreia de Evanilton Gonçalves. Uma mistura de contos, micro-contos, autoficção e um apanhado de ideias de um jovem professor errante pelos recantos da velha cidade da Bahia. Escritos em prosa e poesia concreta, mas ainda assim macia, proporcionando uma leitura que desliza em palavras e evoca imagens universais. Por mais peculiar que seja Salvador e seus habitantes, existem semelhanças com outros centros urbanos, principalmente aqueles derivados da colonização e da diáspora.
Não só o ônibus cheio nos horários de pico, mas as caminhadas apressadas ou contemplativas pelas centenárias esquinas e praças da cidade oferecem ao leitor um vislumbre da dinâmica soteropolitana, mas sob o olhar intimista, profundo e filosófico do autor. Salvador e todas as suas idiossincrasias invade a alma de Evanilton e ele transforma a experiência e devolve-a com suas lentes sensíveis e sutis, porém dotadas de senso crítico e uma certa ironia.
É um olhar contemporâneo sobre a cidade mas, principalmente, sobre o soteropolitano periférico, aquele que vence distâncias gastando sola de sapato, chacoalhando nos coletivos, pedindo carona solidária e distribuindo versos a quem nem sempre retribui as poucas gentilezas recebidas na aridez cotidiana.
O livro evoca a mesma atmosfera meio revolucionária em que gravitam os poetas populares da cidade, que pedem um minuto de atenção ao viajante entediado ou imerso nos próprios pensamentos, sacudindo-o, por alguns minutos, da languidez dos dias abafados e mormacentos, quando os ônibus transformam-se em pequenas estufas a cozinhar gentes e juízos. E, nas ruas apinhadas, o transeunte sonha com a brisa suave vinda do mar e barrada pelos paredões de vidro e concreto dos condomínios de luxo que roubam a paisagem e a ventilação.
Essa Salvador cada dia mais abafada por fora, de certa forma, reproduz o sufocamento interno de seus habitantes mais sensíveis. Ora reflexo da revolta com os políticos e seus outdoors carregados de photoshop, ora com a solidão que hoje em dia nem a ‘cidade efêmera do Carnaval’, a despeito de toda publicidade, consegue mais aplacar.
No prefácio da obra, o professor Antonio Marcos Pereira, da Universidade Federal da Bahia, a mesma onde Evanilton Gonçalves graduou-se pelo Instituto de Letras, evoca os poemas em prosa de O spleen de Paris, de Charles Baudelaire, e a estranheza com o mundo presente nos versos do poeta flâneur francês do século XIX. Pereira atribui a Evanilton um ‘spleen de Salvador’ e a definição não podia ser melhor.
Os textos livres e os pensamentos do autor baiano, que de supérfluos não têm nada, registram em uma crônica cotidiana que mistura prosa e poesia, o mesmo lirismo sem regras da alma sensível que vagueia no limite do tédio existencial, mas revestida com o véu lírico que encobre a realidade crua e que só aqueles com todos os sentidos aguçados conseguem captar…
Ficha Técnica:
Pensamentos Supérfluos: coisas que desaprendi com o mundo
Autor: Evanilton Gonçalves
Editora: ParaLelo 13S
108 páginas
R$ 30,00 (pesquisa em 21/05/2017)
Onde encontrar: no espaço físico da Boto Cor-de-Rosa Livros, Arte e Café, em Salvador-BA (Rua Marquês de Caravelas, 328, Barra / Tel.: 71 98647-7489) ou na loja virtual