Hoje publico o final da série de comentários das minhas leituras de Carnaval, para quem ainda não segue o blog no Instagram (postei a maratona por lá, em tempo real).
Leia também:
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>>Galeria de leituras carnavalescas – 2017 – Parte II

Dia 07 (01/03/17 – bônus do Arrastão da Quarta de Cinzas) – A identidade, Milan Kundera (Companhia de Bolso – de R$ 11 a R$ 37,29)
A identidade é uma história difícil de aceitar nos dias de hoje, quando as mulheres buscam o empoderamento e, cada vez mais unidas, lutam diariamente contra as convenções que as aprisionam em modelos de beleza e comportamento.
Mas, essa novela de Milan Kundera é necessária, justamente porque parte de uma premissa construída por preconceitos antigos: a de que as mulheres vivem em função de serem desejadas pelos homens e angustiam-se diante do envelhecimento; porque uma vez perdido o viço da juventude, não serão mais olhadas, cobiçadas.
De uma forma muito particular, a obra toca transversalmente na questão da invisibilidade feminina, no desconforto de sermos esse ‘outro’ alijado de direitos e da própria voz. Pontua ainda questões como maternidade, frustração, sexualidade e os comportamentos super-protetores e cavalheirescos que acabam por subestimar a capacidade das mulheres comandarem as próprias vidas e decidirem o próprio destino.
A identidade conta a história de Chantal e Jean-Marc, casal que, após férias em um balneário, enfrenta uma crise no relacionamento. No hotel onde se hospedaram para as férias, Chantal queixa-se de que os homens não olham mais para ela, que todos lhe parecem ridículos e infantilizados nos papeis de pai, com bebês presos ao peito, nas mochilas tipo canguru. E, por isso, já não viram a cabeça para acompanhar o seu andar.
Jean-Marc, acreditando na ideia de que as mulheres precisam do desejo masculino para sentirem-se inteiras e que apenas “o olhar do amante” não é suficiente para saciar o ego feminino, toma uma atitude que termina por desencadear a crise no relacionamento dos dois. Ao mesmo tempo, Chantal precisa lidar com questões pendentes de um casamento anterior, onde viveu uma perda que a afetou profundamente e uma relação abusiva não só por parte do ex-marido, mas de toda a família dele.
A história é construída propositalmente para confundir sonho e realidade, como se Chantal e Jean-Marc vivessem muitas vidas dentro de uma só e precisassem percorrer um caminho longo e árduo para encontrarem a si mesmos e um ao outro. A questão no livro está mais voltada para os processos de autodescoberta, principalmente os de Chantal. Embora, vale ressaltar, o autor também descreva situações facilmente identificadas com o machismo estrutural da sociedade e com o machismo particular dos personagens.
Com isso, não estou dizendo que Milan Kundera é machista, mas que ele expõe na narrativa os comportamentos machistas dos seus personagens (de Jean-Marc, do chefe de Chantal, do ex-marido) e os condicionamentos impostos às mulheres e moldados a partir da educação machista recebida.
A própria insegurança de Chantal com sua aparência ou a passividade com a qual ela aceitou diversos abusos ao longo da vida mostram que a protagonista tem uma longa jornada de desconstrução e reconstrução de si mesma pela frente.
Embora não seja tão bom quanto A insustentável leveza do ser, publicado em 1982, considerado a obra-prima de Milan Kundera e que trata do tema central da opressão em seus diversos níveis, A identidade, que é de 15 anos depois, 1997, traz o mesmo questionamento existencial e é escrito com a poesia característica do estilo do autor.
O livro deixa um travo amargo na boca nos leitores (principalmente, das leitoras), provocando inquietação e, ao mesmo tempo, oferecendo um rico material de reflexão…

Dia 08 (02/03/17 – bônus da Ressaca) – A morte do gourmet, Muriel Barbery (Companhia das Letras – R$ 42,50 a R$ 79,90)
A morte do gourmet é a história de um homem eternamente com fome, embora tenha o privilégio de experimentar as iguarias mais finas. Muriel Barbery, nesse que é seu livro de estreia – mas que se tornou conhecido após o sucesso mundial de A elegância do ouriço -, nos apresenta ao renomado crítico de restaurantes Pierry Arthens, que está à beira da morte e às voltas com as lembranças de um sabor antigo.
Desenganado e com poucas horas de vida, o gourmet do título, uma celebridade do mundo da alta gastronomia, não se recorda do prato que provocou nele tamanha sensação de nostalgia. Poucas horas antes de deixar de existir, o grande gênio hedonista quer comer essa iguaria uma última vez, dar-se ao luxo de um último prazer. E para isso, força a memória, aroma a aroma, mergulhando nas reminiscências de sua vida desde a infância, quando foi seduzido pela alquimia da cozinha de sua avó.
A partir das lembranças do gourmet – e das vozes de outros personagens que assistem seu definhar -, o leitor é apresentado à vida de um homem extremamente sofisticado e dotado de um talento sem par, mas de espírito mesquinho e incapaz de criar vínculos com as pessoas que passaram por sua vida. Se cozinhar é um ato de amor; comer, por sua vez, pode converter-se em uma ação de extremo egoísmo, com um limite tênue entre o gourmet e o glutão.
As experiências do protagonista com pratos raros, temperos e sabores peculiares não foram suficientes para aplacar sua fome existencial, o que acabou por devorar a própria família e corroer suas amizades, tornando as afeições insípidas e desconfortáveis. Um dos personagens-narradores do livro é a concierge Renée, que também aparece em A elegância do ouriço. Além de Renée, ouvimos as vozes dos filhos neglicenciados, da esposa submissa e abusada, do sobrinho preferido, do discípulo mais talentoso, da amante e até do gato de Pierry Arthens. Todos exibindo as cicatrizes da convivência com ele.
A morte do gourmet é ainda um romance bastante sinestésico, principalmente nas descrições das primeiras experiências gastronômicas do protagonista, como quando ele experimenta tomates frescos recém-colhidos da horta de uma tia, ou quando sente na língua seu primeiro gole de whisky, em uma espécie de rito de passagem com o avô.
Delicado e ao mesmo tempo cruel, o livro também provoca fome no leitor, por mais histórias de Muriel Barbery.
Nota: Todos os livros tiveram os preços pesquisados na Estante Virtual, em 15/03/17
Oi! Gostei das suas resenhas. Nunca li nada do Milan Kundera, mas como você citou ali acho que vou começar pela “insustentável leveza do ser”. Também tenho curiosidade em Muriel Barbery. Gostei muito do seu jeito de escrever e também das fotos! Já estava seguindo o blog faz um tempo, mas parei para ler com calma só agora. Vou acompanhar com mais carinho, e mais de perto, suas postagens! :) (aproveitei para seguir o seu instagram também, o meu é @presentedoler caso queira visitar).
Beijos e boas leituras!
Barbara Filippini (Presente do Ler – https://www.presentedoler.com)
Oi Bárbara,
Já estou seguindo você também :)
Muito obrigada pela visita, por seguir o blog e pelas palavras tão carinhosas. Espero que goste de A insustentável leveza do ser. Me conte o que achou!
beijos e ótimas leituras por aí também. Vou acompanhar o Presente do Ler!
Andreia