“O coração, órgão da vida e da fala, do renascimento e da regeneração, do sagrado e do mágico, foi por mim totalmente humanizado. Ele foi dado ao homem como ferramenta e instrumento de amizade, como meio de dominar o próprio eu e a carne por meio das palavras e nas palavras que o habitam.”
A deusa Maat era a responsável por pesar a alma dos mortos no julgamento de Anúbis. De um lado, ela colocava uma pena e do outro, o coração do falecido. Se a balança permanecesse em equilíbrio, o morto faria sua passagem para a outra vida e festejaria ao lado das divindades até o fim dos tempos. Mas se o coração se mostrasse mais pesado que a pena de Maat, o órgão seria comido por Ammit, a devoradora de almas, como símbolo da perdição eterna.
Em Histórias perversas do coração humano, o historiador Milad Doueihi mistura dados históricos dos primeiros estudos e conceitos de anatomia, como a descoberta do sistema circulatório, com trechos do antigo mito egípcio do julgamento de Anúbis e de outras lendas sobre o ‘coração devorado’, para traçar um panorama da evolução dos conhecimentos e das representações simbólicas do órgão ao longo do tempo.
Muito antes do advento da neurociência e das descobertas sobre o cérebro, o coração figurava como o grande centro da vida e das emoções. Ainda hoje, o órgão é metaforizado em símbolo de amor e sofrimento. Mesmo a literatura utiliza-se das releituras dessas antigas crenças. Um exemplo é a madrasta da Branca de Neve, que assa e come o coração de uma gazela achando que é o da enteada, para assim absorver a beleza e juventude da princesa.
Ao ler esse livro, me lembrei da trilogia Mundo de Tinta, de Cornelia Funke. Em um dos livros, o saltimbanco Dedo Empoeirado, ao oferecer-se para as Damas Brancas (as filhas da Morte), no lugar de seu amigo Farid, tem o coração lavado no rio do esquecimento, como metáfora para o sono eterno enquanto a libertação do morto da memória e da saudade dos vivos.
Amor cortês e sangrento
Uma parte do estudo de Doueihi se concentra na Idade Média e nas histórias da tradição cortês. Certos relatos trazem as vinganças engendradas pelos senhores dos castelos contra suas esposas, que eram obrigadas a comer, sem saber, o coração de seus amantes assassinados por ciúmes e para ‘lavar a honra’ dos maridos.
Outras versões de cantigas medievais trazem amantes à beira da morte que pedem aos servos de confiança que enviem seus corações para suas amadas. Ao receber a prenda sinistra, a dama o devora como último recurso de unir-se ao amado. Nesses casos, o coração simboliza não apenas o depósito de todos os sentimentos do morto pela amada, mas a essência dele. Ao comer o coração do amante morto, a dama lhe concede nova vida, unindo-se a ele em espírito.
Para quem aprecia os mitos antigos e suas interpretações simbólicas, a leitura de Histórias perversas do coração humano traz bastante material de reflexão. A linguagem é de fácil assimilação e o livro oferece também muitas notas de esclarecimento e um levantamento bibliográfico para quem quiser se aprofundar no tema.
Ficha Técnica:
Histórias perversas do coração humano
Autor: Milad Doueihi
Editora Jorge Zahar
122 páginas
R$ 9,90 (pesquisado em 28/12/16 na Estante Virtual)