A dama oculta é um thriller claustrofóbico. Tem a maior parte da ação acontecendo em um trem que cruza a Europa. Mas, ao contrário de Assassinato no Expresso Oriente, da britânica Agatha Christie, o livro dessa conterrânea da ‘dama do suspense’ tem uma atmosfera mais soturna. Ethel Lina White envolve o leitor no desespero de sua protagonista, que precisa lidar sozinha com a solução de um misterioso desaparecimento, enquanto todos ao redor acreditam que ela está louca.
O livro conta a história de Iris Carr, jovem inglesa, órfã e rica, que costuma viajar com um grupo de amigos para curtir a vida nas paisagens mais estonteantes da Europa continental. A aventura começa em um hotel, em algum lugar não especificado pela autora, mas que pela descrição assemelha-se ao leste europeu. Logo na introdução da personagem, vemos uma garota destemida, vestida em seus shorts e botas de alpinismo, arriscando-se sozinha em passeios pelas montanhas para apreciar a paisagem.
O comportamento de Iris é motivo de fofoca e de julgamentos morais pelos demais hóspedes do hotel, todos membros da preconceituosa sociedade britânica da primeira metade do século XX, que ainda preservava ares aristocráticos e pós-coloniais. O livro é de 1936. Dois anos depois, Alfred Hitchcock o transformou em filme.
Mais do que a juventude esfuziante e barulhenta de Iris e seus amigos, é a propensão da moça à independência que horroriza seus conterrâneos. No dia seguinte, ela e os demais turistas deverão pegar o trem de volta à Londres. Enquanto os outros seguem o script: arrumam a bagagem, telegrafam aos criados na Inglaterra e bebem chá na varanda de forma civilizada, Íris, um espírito livre, aproveita os últimos minutos para se divertir.
Entre os hóspedes estão um pároco e a esposa, duas senhoras fofoqueiras daquelas que parecem saídas de um romance de Jane Austen, e um casal em lua de mel que passa por desentendimentos durante as férias. Todos embarcam no mesmo trem, mas fazem questão de ficar longe da moça que “não se comporta de forma adequada”. Os amigos de Íris voltaram para a Inglaterra no dia anterior e por isso, ela viajará sozinha.
Thriller feminista
A dama oculta não esconde a militância de Ethel Lina White em prol da libertação feminina. A autora cria uma heroína que enfrenta diversos dissabores justamente por ser mulher, jovem e solteira em uma sociedade machista, patriarcal e preconceituosa. Por meio dos diálogos dos outros hóspedes, percebemos o quanto uma mulher como Íris incomodava por não corresponder ao que a sociedade esperava das moças do período. Ela não só gerencia o próprio dinheiro, como vive como se estivesse eternamente em férias.
Ao mesmo tempo, a autora mostra o quanto o aparente excesso de confiança da protagonista na verdade esconde inseguranças e complexos moldados pela educação repressora e pelas convenções sociais que sufocavam as mulheres. Mais do que um thriller de suspense, A dama oculta é sobre a jornada solitária de uma jovem em busca de vencer as limitações e recalques impostos, e de assumir todas as rédeas do próprio destino.
Até então, Íris era bajulada por ser rica e gozava dos privilégios de sua classe social. Mas também era considerada uma cabeça oca. Pela primeira vez, está sendo abertamente hostilizada e confrontada. Por isso, precisa se superar e provar, não aos outros, mas a si mesma, que é capaz de muito mais.
Abalos na autoestima
No trem, a jovem faz amizade com uma professora chamada Srta. Froy, que viaja para uma temporada na casa da família, no interior da Grã-Bretanha. A protagonista e a Srta. Froy tomam chá no vagão restaurante e dividem o mesmo espaço na cabine do trem. Até que a professora desaparece sem deixar rastro e sem que tenha havido qualquer parada do veículo. Iris, então, inicia uma jornada árdua para descobrir o que aconteceu com a companheira de viagem.
De forma absurda, nenhum dos demais passageiros parece lembrar da existência da Srta. Froy. Ninguém lembra de tê-la visto embarcar! Íris passa a ser tratada como se estivesse em meio a uma crise ‘histérica’. Os passageiros dizem que a moça é louca e a todo momento tentam convencê-la disso, minando sua autoconfiança, atacando sua autoestima e questionando a capacidade da jovem de cuidar de si mesma.
Quanto mais Íris tenta provar que algo estranho aconteceu, mais é desacreditada e humilhada. Ela, que se esforça tanto para suprimir um latente complexo de inferioridade, volta a sentir os mesmos terrores que a assombravam na infância. Um médico sinistro, quase um irmão gêmeo do Dr. Caligari, decide que a jovem precisa de repouso e pretende interná-la em um sanatório na próxima parada do trem. Na visão desse médico, ‘do especialista’, uma garota que viaja desacompanhada não está em seu juízo perfeito!
A partir daí, a heroína inicia uma corrida contra o tempo para resolver o mistério e descobrir onde está a Srta. Froy. O leitor sente na pele a aflição de Iris, porque encontrar a passageira sumida é a única forma de ao mesmo tempo salvar a professora de alguma situação perigosa e livrar a protagonista de ir parar em um hospício. Ethel Lina White não cria uma super-mulher, sua protagonista tem vulnerabilidades e inseguranças, o que a torna mais verossímil, despertando a empatia do leitor.
Medo e loucura
A história passa a equilibrar-se na linha tênue entre sanidade e loucura, jogando com a percepção da protagonista e do leitor sobre realidade x fantasia. Os abalos na autoconfiança de Íris, por conta da descrença dos outros passageiros, mostram nas entrelinhas toda a pressão social sofrida pelas mulheres para se autoafirmarem.
O suspense cresce até o limite da angústia. As passagens em que a autora narra a expectativa dos pais idosos da Srta. Froy, aguardando a data da chegada dela em casa; ou do cachorro de estimação da professora, indo e vindo da estação para esperar o trem que trará sua dona de volta, são de cortar o coração. E essa trama paralela deixa o leitor ainda mais agoniado quando a ação retoma o foco principal.
Ethel Lina White escreveu diversos romances ao longo da carreira, mas consagrou-se com A dama oculta por unir de forma instigante e eficiente um thriller de detetive e uma história de crescimento pessoal. A autora deixa transparecer, com muita ironia, seus questionamentos pessoais ao status social das mulheres de sua geração. Além disso, a ação do romance, de forma ‘subversiva’ para os padrões da década de 1930, é toda centrada em personagens femininas. E a resolução dos conflitos também cabe a uma mulher.
Este livro, lançado pelo selo Vestígio do Grupo Autêntica, dentro da Coleção Hitchcock, completou 80 anos agora em 2016, mas não está datado. Ao contrário, pode ser lido com prazer tanto por quem busca um entretenimento dos bons, quanto por quem tem um olhar mais apurado para as questões femininas.
Do alto de suas oito décadas, A dama oculta é puro empoderamento!
Ficha Técnica:
A dama oculta (The Wheel Spins)
Autora: Ethel Lina White
Tradução: Rogério Bettoni
Grupo Editorial Autêntica / Selo Vestígio
272 páginas
R$ 35,92 (pesquisa em 17/12/16 no site da Livraria Cultura)
Gostei da resenha. Mas o gênero… Medo
Você não gosta de thrillers? Me divirto com alguns e esse surpreendeu!
Em tua homenagem, vou tentar esse
Guarde energia, menino! Vir ao blog e gostar da resenha mesmo sem gostar do gênero, já é uma homenagem :)
Você merece