Exibido no Brasil nesta sexta-feira, 24, pela HBO, o episódio final da série Penny Dreadful é de uma poesia delicada, desesperadamente romântica e sombria, bem ao gosto das almas moldadas com a leitura dos clássicos do terror. A série, iniciada em 2014 e com um elenco estelar e afinadíssimo, capitaneado por Eva Green em uma das melhores performances da carreira, teve três temporadas e audiência que fica aquém das atuais líderes do gênero (Game Of Thrones e The Walking Dead).
Mas, com seu estilo peculiar, fotografia belíssima e ambientação na Londres vitoriana, costurando em uma única história os destinos de personagens literários mais do que aclamados e imortais, Penny Dreadful não é blockbuster e nem foi concebida para agradar qualquer público. A série é biscoito fino, obra de arte em forma de entretenimento para as noites de domingo (dia em que era exibida pelo canal original, o Showtime. No Brasil, o HBO retransmitia). Não é para degustar no desespero das maratonas, mas para sorver em doses sutis e sedutoras como as gotas verdes do absinto.
Os fãs mais radicais, ou aqueles menos conhecedores dos clássicos literários que originaram Penny Dreadful, passaram os últimos dias revoltados e reclamando muito na internet sobre a descontinuidade da série. Para uma boa parte, o final foi precoce e a história poderia ser esticada por mais duas temporadas. No entanto, embora anunciado de forma intempestiva, faltando apenas dois episódios para o the end, esse final já havia sido previsto ainda em 2014, na estreia do programa, quando o criador da história, John Logan, revelou o desejo de esgotar a narrativa em três temporadas. A ideia era que a série fosse enxuta, precisa e que não perdesse qualidade com barrigadas desnecessárias.
Para quem nunca ouviu falar, Penny Dreadful conta a história de Vanessa Ives (Eva Green), uma mulher com poderes sobrenaturais e uma alma atormentada pela perda da fé e por uma inclinação para o lado sombrio, que é disputada por duas poderosas forças das trevas desde a origem dos tempos: Lúcifer e Drácula (Christian Camargo). Vanessa é protegida de Sir. Malcom Murray (Timothy Dalton). Em torno da história de Vanessa, outros personagens clássicos da literatura gravitam e vivem histórias paralelas, mas de alguma forma, interligadas com a dela.
O co-protagonista da série é o pistoleiro Ethan Chandler, interesse amoroso de Vanessa e assombrado por uma maldição, vivido de forma intensa por Josh Hartnett. Entre os amigos da srta. Ives estão o jovem e idealista médico Victor Frankestein (Harry Treadway), a Criatura (o britânico Rory Kinnear, fabuloso, comovente, depois dele a Criatura jamais será a mesma), Dorian Gray (Reeve Garney) e outros personagens retirados de livros e da mitologia, que se unem àqueles criados especialmente para a série, como o extravagante e divertido egiptólogo Ferdinand Lyle (Simon Russel Beale). Com suas tiradas memoráveis, a língua ferina e um certo charme fin de siecle, Mr. Lyle bem pode funcionar como alter ego de Oscar Wilde. Destaque ainda para a vidente Evelyn Poole (Helen McCrory), a prostituta Brona Croft (Billie Piper) e a Dra. Florence Seward (Patti Lupone), com seu assistente Renfield (Samuel Barnett honrando o escravo de Drácula), entre outros.
Embora não seja obrigatório, porque a história apresenta os personagens de forma satisfatória para os neófitos, para aproveitar cada um dos capítulos de Penny Dreadful em sua totalidade, para perceber as sutilezas e subtramas desse universo criado por John Logan, é importante ter um conhecimento prévio dos livros que o inspiraram, como o já citado Drácula, de Bram Stoker; Frankestein, de Mary Shelley, O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson.
Vale ainda ter uma noção histórica da Inglaterra da era vitoriana, com sua corrupção escondida em alcovas e cortiços, suas regras morais rígidas e a religiosidade cheia de culpa e remorso. E, se não for pedir demais, ter dado uma passada de olhos em A Liga Extraordinária, de Alan Moore, conhecer obras referenciais de Charles Dickens, como Oliver Twist e ter noção mínima sobre figuras arquetípicas como o lobo (lobisomem), a bruxa, e os demônios que assombram a humanidade desde tempos imemoriais.
A quantidade de personagens na série, mais o fato de que acompanhar as tramas paralelas sobre eles fica incompleta para quem não conhece essas figuras e suas simbologias, dá a sensação de que o final deixou pontas soltas. Mas Penny Dreadful nunca pretendeu recontar os clássicos, a série não era uma fanfic, Logan teve o bom senso de criar um universo paralelo em que esses personagens fascinantes convivessem juntos e vivessem situações em comum, mas sem mexer com os cânones.
Para a geração atual, acostumada com as desconstruções e reconstruções do universo digital, em que fanfics se tornam mais populares do que a obra de origem, em alguns casos, é mesmo complicado de aceitar e entender a coerência e o respeito do roteiro de Penny Dreadful.
É preciso saber que a beleza de Dorian Gray reside na solidão de sua imortalidade, que a humanidade da criatura grotesca criada por Victor Frankestein está nas entrelinhas do romance fundamental escrito por Mary Shelley e que a monstruosidade dessa criatura torturada nasce do abandono e da dor; que a dualidade Jekkil x Hyde vai além de um deles ser o retraído e o fraco em oposição a um lado extravagante, forte e furioso da mesma personalidade, que essa dualidade tem menos relação com poções mágicas e mais com a luz, as trevas e os entremeios de sombra da alma humana.
É fundamental conhecer o Drácula legítimo e originado nas páginas de um romance de 1897: um ser antigo, amoral, perverso, frio, insensível, ladino, incapaz de sentir amor verdadeiro, e perfeitamente capaz de fugir do embate final com o seu maior inimigo; porque o vampiro fundamental, pai de todos os sugadores de sangue, não é e nem nunca foi o dândi sensual e sedutor que o cinema cristalizou em algumas das adaptações do romance epistolar de Bram Stoker.
Para se comover com o lirismo e a poesia melancólica de Penny Dreadful, sentir a angústia e deleite do crente que perdeu e depois resgatou a fé, de Vanessa e de Ethan, é preciso ter um espírito moldado pelos contos de Edgar Allan Poe, pela poesia angustiante de Tennisson, flertar com a escuridão, chegando “à beira do abismo”, como diz o Mr. Chandler. Não que seres mais ensolarados deixem de apreciar, mas uma alma gótica na essência e uma certa sedução pelo nefasto, o sombrio e o místico, farão toda a diferença.
Para quem quer experimentar, o Netflix tem as duas primeiras temporadas no seu acervo e a terceira deve chegar por lá em breve. Divirtam-se e façam as orações antes de dormir!
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Que lindo seu texto sobre Penny Dreadful. Ainda não vi a temporada 3 e fiquei triste com o encerramento, mas, ao mesmo tempo, feliz por saber que essa não será mais uma série incrível que vai deslizar em sofríveis temporadas desnecessárias. Vc expressou tudo que eu senti qdo conheci esse universo sombrio, charmosa, inteligente e incrivelmente atraente. Uma série pra ver e rever, se deliciando com os detalhes. Bj e boa semana :)
Obrigada, Nayara :)
Uma ótima semana para você também!
beijos