“Agora que estou velha, da Vila Isabel guardo as melhores recordações da juventude… Naquela época, boêmio e cantor era o mesmo que mendigo e marginal. Se sobrevivi àqueles tempos, o futuro eu tiro de letra.”
Dessa vez, o livro eleito para a tag #1livroporfinaldesemana foi Aracy de Almeida – Não tem tradução, de Eduardo Logullo. Sobre Aracy, sabia apenas que foi uma cantora famosa na era de ouro do rádio, mas a referência maior para as pessoas da minha geração, as crianças da década de 80, era vê-la como jurada no Show de Calouros de Sílvio Santos, nos domingos à noite. Grata surpresa saber que ela era muito mais…
Uma foto no Insta e uma resenha no Mar
Aracy de Almeida – Não tem tradução é uma biografia e ao mesmo tempo não é. O formato do livro foge do padrão das cronologias que começam contando a vida do biografado desde a infância e seguem acompanhando cada fase de sua trajetória. Assim como a personagem retratada, o livro não permite uma classificação padrão, até porque Aracy de Almeida quebrou padrões desde sempre.
Mistura de colagem com álbum de fotografias e caderno de versos e citações, nas páginas desse livro encontramos desde letras de músicas e trechos de falas divertidas ou polêmicas de Aracy em entrevistas, até os casos e ‘babados’ guardados na memória dos amigos; além de depoimentos de artistas contemporâneos ou admiradores das muitas personas da cantora que na maturidade tornou-se emblemática jurada de programas populares na TV.
Inesquecíveis suas gongadas recheadas de impropérios e os “dez mangos” distribuídos aos sofríveis calouros que se esgoelavam no palco do “Seu Silvio”. Além do Show de Calouros, ela também foi jurada de Chacrinha e participou de outros programas de auditório famosos entre os anos 60 e 80, Em todos, dizia o que vinha à cabeça, sem autocensura.
A carreira de Aracy de Almeida, uma rainha do rádio que vestia ceroulas e fugia aos estereótipos, começou ainda na adolescência. Com 15 anos ela conheceu e se tornou grande amiga de Noel Rosa, sendo considerada até hoje por historiadores da MPB como uma das maiores intérpretes dos sambas do poeta da Vila Isabel. Nascida no Encantado, na região do Engenho de Dentro, subúrbio carioca, Aracy de Almeida era uma figura extraordinária, boêmia, típica malandra dos anos 30, independente, desbocada, libertária, debochada… Uma mulher à frente de seu tempo e devidamente empoderada.
A breve, porém intensa, amizade de Aracy e Noel Rosa permeia toda a narrativa do livro. Foram seis anos de uma convivência que marcou a vida dela para sempre e só não durou mais tempo porque o cantor morreu precocemente, aos 26 anos, de tuberculose. Ela declarou centenas de vezes que os dois nunca foram amantes, mas Noel encontrou na menina magrinha, boa de copo e com os cabelos cortados como os do poeta Castro Alves, o seu alter ego. Aracy gravou dezenas de sambas de Noel, frequentou botecos e zonas de baixo meretrício ao lado do compositor, onde entornava todas e fazia shows para entreter as meninas da zona com a mesma dedicação e espontaneidade com que se apresentava para a high society.
Depois da morte do amigo e parceiro artístico, por ter tantos sambas de Noel no repertório e devido ao sucesso que sua voz anasalada e pungente fazia nos programas de rádio, ajudou a colocar o nome do sambista no rol dos grandes mestres do cancioneiro nacional. Ao mesmo tempo, ficou marcada pela sombra das suas interpretações para as músicas do poeta, até trocar a carreira de cantora pela de jurada em tempo integral, nos anos 70. E embora tenha gravado outros grandes compositores ao longo da carreira, ficou para sempre conhecida como ‘a intérprete soberana de Noel’.
Além de apresentar fatos da vida da artista em um formato dinâmico, que torna a leitura divertida e fluida, Eduardo Logullo acaba também oferecendo um panorama rico dos personagens que atuaram no nascimento da música popular brasileira e na elevação do samba ao status de emblema da identidade cultural brasileira. A leitura dessa biografia peculiar, escrita para uma personagem igualmente fora do comum, é um prato cheio para quem gosta de samba e para quem tem alma nostálgica.
Apesar da carranca exibida aos domingos na TV e do temperamento forte de leonina, Aracy tinha um lado afetuoso e era o tipo de pessoa que não se levava muito a sério. Boas risadas e a oportunidade de conhecer uma figura única aguardam quem se aventurar a cair na farra com a ‘Dama da Central’.
Ficha Técnica:
Aracy de Almeida – Não tem tradução
Autor: Eduardo Logullo
Editora Veneta
216 páginas
R$ 34,90 (no site da própria editora, pesquisa em 22/05/16)