“Pensei em dar meia-volta nesse momento, quando já seguia por uma pista larga que um dia fora uma estradinha de pedras ao lado de um campo de cevada, em retornar e deixar o passado em paz. Mas fiquei curioso.”
E o livro escolhido para a tag #1livroporfinaldesemana dessa vez foi O oceano no fim do caminho, do escritor britânico Neil Gaiman. Desde os 10 anos, sou a criança que não curte muito sair para brincar lá fora e prefere passar os dias viajando para outros mundos nas páginas de um livro, igualzinha ao protagonista desta história….
Uma foto no Insta e uma resenha no Mar
O oceano no fim do caminho se mantém fiel àquela atmosfera onírica e misteriosa dos livros de Neil Gaiman. Conta a história de um homem de meia-idade que retorna à casa de sua infância para um funeral e a partir daí, relembra episódios peculiares que ocorreram logo após seu aniversário de sete anos, desencadeados pelo suicídio de um hóspede.
Delicada como um poema, a história mostra de que forma os medos da criança moldam a personalidade do adulto. E mais, promove uma espécie de resgate meio nostálgico e dolorido do ato de crescer.
Cheia de metáforas e referências a universos paralelos, a história remete às Crônicas de Nárnia, mas com um toque gótico e sombrio característicos à literatura de Gaiman e sem os mitos cristãos presentes na obra de C.S. Lewis. A mitologia presente nessas páginas também se alimenta menos dos contos de fadas e antigas lendas nórdicas, celtas ou africanas que costuram as narrativas de outros romances do autor, como Deuses Americanos, Lugar Nenhum, Os filhos de Anansi ou Stardust.
É literatura de fantasia, especialidade do autor, mas com raízes profundas na psicologia e na filosofia. Dessa vez, Neil Gaiman olha para as estrelas com mais melancolia e menos romance, através de uma espécie de véu cósmico que me lembra das viagens de autoconhecimento de Micrômegas (Voltaire).
O oceano no fim do caminho foi concebido inicialmente como um conto dedicado à mulher do escritor, Amanda. Mas cresceu até virar este singelo romance ambientado no começo dos anos 1960 e com alguns traços autobiográficos como as referências à casa e à região na Inglaterra onde o autor cresceu. Inclusive, fotos de família foram usadas para criar a atmosfera da história.
Neil Gaiman sempre tem gatos em suas histórias. E neste livro, vale observar os felinos que entram e saem da vida do protagonista e seus significados em cada etapa do amadurecimento do personagem. As personalidades, idades e as circunstâncias em que cada gato entra na vida do menino e o fato dos felinos serem considerados animais que fazem a ponte entre esse mundo e aquele oculto aos nossos olhos.
O personagem principal do romance é uma criança sensível, que se refugia nos livros e nas fantasias que as boas histórias conseguem despertar. Depois de adulto, ele ainda busca refúgios sempre que tem uma crise iminente, mas dessa vez, vale retornar à paisagem da infância ou ao aconchego da fazenda Hempstock, endereço onde ele conhece sua amiga Lettie, a menina que o apresenta ao ‘oceano no fim do caminho’.
A personalidade retraída e a forma como o protagonista questiona a insensatez dos adultos cativam o leitor, que se encanta ainda com as três mulheres da família Hempstock, principalmente com Lettie, que vira uma espécie de anjo protetor do protagonista.
Lettie, sua mãe e avó vivem nesse ‘reino secreto’ que tem cheiro de coisas antigas, imemoriais, onde tudo tem um sabor mais doce e profundo, como as memórias da infância. O autor diz no texto dos agradecimentos, no final do romance, que as Hempstocks povoam sua imaginação há muito tempo.
Essa trindade feminina e astral, bem como o oceano nos fundos do terreno da fazenda, que se estende até ligar velhas e novas terras ou se retrai até caber em um balde, criam uma comoção e encantamento que mexe com uma memória mais ancestral, das origens da criação. A presença delas é um conforto, como uma caneca de sopa encorpada e quentinha, tanto para o protagonista quanto para o leitor.
O oceano no fim do caminho me fez chorar como há muito tempo um livro não consegue. Mas não é aquele choro sufocante de angústia. Antes, são aquelas lágrimas que apaziguam as velhas feridas das dores passadas. Lágrimas que lembram das pequenas belezas da existência…
Ficha Técnica:
Autor: Neil Gaiman
Tradução: Renata Pettengil
Editora Intrínseca
208 páginas
R$ 22,40 (Submarino, pesquisado em 15/05/2016)