(Im)paciente Crônica: No Touchy. No Touch!

no touchy

Fui uma criança, como bem me lembra mamãe, “abraçativa”. E sou um adulto que gosta muito do aconchego de um abraço sincero, daqueles em que a gente se entrega sem rede de proteção. Mas se existe uma coisa que ativa o meu lado intolerante de imediato, é gente que adora forçar intimidade pegando nos outros, alisando, passando a mão no braço, ombro ou joelhos. Eu peço para morrer!

Recordo o imperador Kuzco e a hilária cena da animação “A nova onda do imperador”, da Disney. “No touchy!” Era a senha para o imperador inca, criado como uma divindade mimada e arrogante, manter a ralé afastada da sua imperial e ensolarada pessoa.

Não é por arrogância ou birra que o toque forçado me irrita, muito menos me considero inacessível, um imperador asteca divinizado. Mas justamente e apenas pelo toque ser forçado, invasivo, uma forma de violência, é que me enfurece. Como disse acima, de criança abraçativa, mas que não saía abraçando deus e o mundo, tornei-me um adulto que aprecia afetos sinceros. Mas, para ganhar meu afeto e junto com ele um abraço gostoso, quentinho e tamanho GG, primeiro, faz-se necessário estabelecer intimidade.

Não consigo sair beijando e abraçando as pessoas se antes não tiver sido criado um elo de confiança e proximidade. Minha geração é mais seletiva, muito menos dada a ‘amar todas as pessoas como se não houvesse amanhã’ do que prega a canção de Renato Russo. Pessoalmente, prefiro iniciar amizades de uma forma bem sutil e discreta, sem muito agarramento antes que se forme aquela confiança necessária aos saltos sem rede.

Percebo que a geração atual é mais grudenta e mais afeita ao amor incondicional imediato. Respeito e acho até engraçado os bandos de adolescentes circulando de braços dados pelos corredores dos shoppings. Quando eu era adolescente, lembro de ter visto muitas amigas e amigos se comportarem da mesma forma, mas havia uma espécie de acordo tácito entre as pessoas e estranhos admitidos no grupo, só entravam de fato para a turma do abraço após algum tempo de convivência.

Imagino que hoje, embora a juventude seja bem mais propensa a amores instantâneos, ainda impere algum código. ‘Pertença ao grupo primeiro e depois se espalhe’, é simples e acredito que válido inclusive para outras espécies de animais que não apenas a humana.

Entre adultos, os homens que mal conhecem uma colega nova de trabalho e já chegam passando a mão em ombros e braços me enojam e me assustam. Há um componente machista e abusivo nesse comportamento. Mesmo que se diga, mas não é intencional e o cara não chega deliberadamente interessado na colega, o fato de haver um desequilíbrio de forças na sociedade entre homens e mulheres, e o fato de haver um desacordo no julgamento dos comportamentos masculinos e femininos, torna o toque forçado de um colega em uma colega de trabalho, uma espécie de assédio inconsciente.

Principalmente porque raramente a recíproca é verdadeira. Não se vê com frequência uma mulher sair alisando os novos colegas homens. Pela própria seriedade de um ambiente corporativo, inclusive, nunca se espera que alguém vá agir com tamanha falta de respeito à intimidade e ao espaço do outro. Trata-se de uma forma dissimulada de violação que, infelizmente, nossa cultura machista predominante não percebe.

As pessoas estão acostumadas a acreditar que violência só ocorre quando socos e pontapés estão envolvidos ou que violência sexual é sinônimo de estupro. Mas não é bem assim. O estupro é uma das, ou melhor dizendo, é a mais grave forma de violência sexual contra alguém. Mas tocar o corpo de outra pessoa, mesmo que seja no ombro, no antebraço ou no joelho, mesmo por cima de uma calça jeans, sem pedir permissão antes, sem de fato fazer parte do círculo íntimo daquela pessoa, é violência sexual e sexista, principalmente quando na maioria dos casos são os homens que forçam contatos sem ter sido convidados!

É inaceitável, na segunda década do século XXI, que as mulheres precisem passar por tamanho constrangimento ou que ainda sejam obrigadas a estabelecer regras e limites claros, dizendo com todas as letras aos colegas de escritório o sonoro “no touch” que na animação da Disney provoca riso; mas que na vida real é um freio contra invasões de espaço e privacidade. Infelizmente, ainda precisamos sim militar nessa causa de que o não é uma palavra definitiva e que significa uma negativa, um bloqueio e um empecilho. Não significa não, sem margem de interpretações, sem zonas cinzentas, sem titubeios. Se ela disse não, camarada, é não!

Mais ainda, é necessário, numa era em que a tecnologia avança, em que se discute direitos humanos e igualdade de gênero como nunca se discutiu na história da humanidade, manter-nos em alerta contra coleguinhas tirados a “reis do pedaço” e que se aproximam de nós com suas mãozinhas nojentas e inconvenientes.

Se for preciso, encarnem o imperador Kusco, mas sem o componente do humor, porque o caso é sério. Mas se isso não resolver, botem a boca no mundo e denunciem o palhaço por assédio. Vocês serão chamadas de feminazi, de frígidas e de mal amadas, mas estarão lutando pela nobre causa de defender o próprio corpo e a própria dignidade.

Mulher nenhuma deve ser submetida a constrangimento, mesmo sob a desculpa do “foi sem querer” ou “era só um gesto de carinho entre colegas”. Para haver carinho, tem de haver primeiro permissão!

2 pensamentos sobre “(Im)paciente Crônica: No Touchy. No Touch!

  1. Bom, permissão vale pra tudo, até pra carinho, combinado? O que diz a vista do meu ponto? Sempre trabalhei em agência de propaganda, é um ambiente mais descontraído do que o corporativo. Sou um abraçador. Faço isso com o frentista ou o dono do posto, tanto faz e nunca tive problemas porque a intenção sempre é clara. Penso que isso faz diferença: a falta de verdade em qualquer coisa deixa tudo sujeito à interpretações. Você tá bem?

    • Estou bem sim. Costumo usar essa tag ‘(im)paciente crônica’ para reclamar de coisas absurdas (ao menos para o meu entendimento) e nos últimos dias tem é absurdo acontecendo nessa cidade da bahia… O que incomoda mesmo nesse tipo de situação, mais do que a verdade da intenção, é a tentativa de intimidade forçada. Também passei boa parte da vida profissional em ambientes informais, as redações de jornal, mas mesmo nesses ambientes, embora colegas se abracem o tempo todo, existe uma espécie de acordo não escrito, onde os novatos são primeiro incorporados ao grupo e só depois, a depender da permissão que se dê e dos limites que se imponha, é que acontecem os abraços :)

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