“Em nome do amor, o que mais em nome do amor?” A pergunta de Bono em Pride (In the nome of love), uma das canções mais famosas da banda irlandesa U2, é uma metáfora sobre as religiões e o quanto, ao longo da história, a fé e o amor por Deus foram usados para justificar atrocidades inexplicáveis. As mulheres sabem bastante desse tema. E na carne. As garotas madalenas (Gutemberg, 2019) é uma ficção histórica baseada em um dos muitos capítulos tenebrosos da devoção cristã. No caso específico do livro, da Igreja Católica.
A saga The Witcher entrou na minha vida pela série da Netflix. Embora apreciadora de fantasia, nunca tinha lido os livros do polonês Andrzej Sapkowski. Sabia que eram conhecidos pelos fãs do gênero e também por gamers, já que tem um jogo igualmente famoso inspirado nos livros. Parei nos games na época do Atari e do Odissey (anos 1980), que eu só jogava uma vez na vida e outra na morte, emprestado alguns minutos dos primos e primas com mais grana que eu. Quando a Netflix lançou a série, fui assistir porque Henry Cavill é algo a se apreciar nessa vida, e curti bastante. Tô na expectativa pela terceira temporada, a última com Cavill, o que é uma pena. Resolvi começar a ler os livros e me diverti muito com os dois primeiros da lista que tem outros seis, que deverão ser lidos em 2023 (?). A prosa de Sapkowski, além de divertida, é recheada de uma erudição que muito me agrada, pois simples, simpática e nada pernóstica [resgatando uma das palavras que aprendi desde criança, ao crescer em casa de mãe a avó bem mais velhas que a média das outras pessoas da minha idade tinham na época]. Os livros contam a história do bruxo caçador de monstros Geralt de Rívia, um ranzinza e resmungão de coração mole, e suas andanças e aventuras ao lado da feiticeira Yennefer e do bardo Jaskier – nesses dois primeiros livros - O último desejo e A espada do destino - Ciri, a criança surpresa que tem sangue de elfo e o destino entrelaçado ao do bruxo aparece rapidamente. Acho que ela entra na história de fato do livro 3 em diante. O autor se apropria da mitologia eslava e da tradição das novelas de cavalaria para tecer uma saga inteira sobre xenofobia, racismo e opressão. Eu nem comecei a ler pensando em temas elevados e discussões sérias, gosto também de me divertir pura e simplesmente, mas parafraseando a minha irmã, a ‘curandeira’ de livros', nada é aleatório e desligar o cérebro é uma ilusão, a gente precisa sim estar atento ao que come e ao que lê, que no fim é a mesma coisa, já que palavras são a sustança dos pensamentos... (Andrzej Sapkowski, O último desejo, 2011; e A espada do destino, 2012, Editora Martins Fontes) #metadeleitura2022 #livro19 #livro20 #leiturasdatraca #mardehistorias
Esse é o romance de estreia de Júlio Verne e como primeiro livro de um autor ainda jovem – ele o escreveu enquanto estudava Direito em Paris e por estar insatisfeito com o curso, que só fez por insistência do pai -, tem altos e baixos. Não é o melhor livro dele, mas já traz as sementes do que seriam suas obras mais famosas. A edição do Príncipis, selo da Ciranda Cultural, é modesta, mas bem traduzida, acessível e bonitinha. O livro faz parte de uma caixa comemorativa com outras cinco obras do autor, incluindo ‘A volta ao mundo em 80 dias’, ‘Viagem ao centro da Terra’ e ‘Vinte mil léguas submarinas’, as mais conhecidas. Os textos são na íntegra e não adaptações infanto-juvenis. Além dos detalhes didáticos sobre balonismo, com direito a descrições detalhadas das engenhocas usadas pelo protagonista – o que pode entediar quem não é interessado em engenhocas -, o livro funciona como crítica ao colonialismo e à exploração do continente africano pelos países europeus ricos, no século XIX. Sob a desculpa de se descobrir as nascentes do Nilo, dezenas de aventureiros e pseudocientistas montaram expedições à África e, claro, legaram ao mundo descrições recheadas de preconceito e que, infelizmente, até hoje explicam os equívocos que muita gente comete ao se referir ao vasto continente cheio de povos e culturas diversas como se fosse uma coisa só. Nas bocas do professor Samuel Fergusson, do seu melhor amigo, o caçador escocês Kennedy, e do criado do professor, o ingênuo Joe, um típico rapazote cockney do East End de Londres, Verne coloca todo o pensamento em voga na época vitoriana sobre a África e seus habitantes, não deixando de tecer ironias sobre o quão mal informadas, racistas e elitistas eram essas ideias... (Júlio Verne, Cinco Semanas em um balão, Editora Ciranda Cultural/Príncipis, 2020, Jandira - SP) #metadeleitura2022 #livro18 #aventura #julioverne #blogmardehistorias #leiturasdatraca
Metrópolis não deu para mim. O texto não me conquistou, achei amarrado, arrastado, cansativo e tremendamente chato. O romance do casal protagonista é muito melodramático para o meu gosto. E a religiosidade beatífica que serve de pano de fundo à narrativa que se pretende denúncia da opressão dos ricos contra os pobres, me pareceu piegas e meramente hipócrita, forjada na piedade cristã de ocasião da tradicional família conservadora brasileira. A sociedade tecnicista e que transforma humanos em forragem para alimentar as engrenagens do capitalismo é a mesma que conhecemos tão bem e que piorou bastante dos anos 1920 para cá. A era digital tem nos robôs e máquinas-deuses de Metrópolis as suas bisavós. Mas, tudo isso se perde no êxtase místico e fanático que costura a narrativa do livro. Também não consegui me conectar a nenhum personagem. Achei todos mortalmente entediantes. Thea von Harbou pode ter sido boa roteirista - tem um trecho do roteiro de Metrópolis nos apêndices da edição da Aleph e é a parte mais empolgante do livro -, mas o romance está aquém. Os diversos roteiros dela filmados por Fritz Lang são filmes icônicos e acredito que como mulher e roteirista nos primórdios do cinema, há o mérito pelo pioneirismo a se apreciar, mas como romancista, ao menos nessa primeira experiência, ela não me convenceu. Ao transformar o roteiro de Metrópolis em romance (há controvérsias sobre se o livro foi adaptado para o cinema ou se o roteiro foi transformado em romance depois, na carona do impacto causado pelo filme), a história se perdeu, ao menos na minha opinião. O filme é, ainda hoje, referência. Boa parte do que se fez em ficção científica e em distopias no cinema traz a marca da estética e das cenas de Metrópolis; a cultura pop também se apropriou de diversos símbolos do filme e até quem nunca assistiu, sabe de orelha ou já viu alguma imagem do filme usada em contextos diversos. O livro, no entanto, não faz justiça ao lugar ocupado pelo filme no panteão dos clássicos. Infelizmente, essa foi minha decepção literária do ano... (Metrópolis, Thea von Harbou, Ed. Aleph, 2019) #metadeleitura2022 #livro17 #distopia #ficcaocientifica #leiturasdatraca #mardehistorias
As autoras dessa coletânea de contos de fadas pesquisaram em vasto acervo, que inclui livros do século XIX e começo do século XX, para buscar nas histórias pistas sobre a condição da mulher na sociedade ao longo do tempo. Um dos contos, A boneca mágica, já tinha lido em versão mais sinistra em outra coletânea de contos eslavos e no livro de Clarissa Pinkola Estés, 'Mulheres que correm com os lobos'. Os contos de fadas são literatura de formação e dizem muito sobre a nossa identidade, os anseios e também as lutas individuais e coletivas. Contos de fadas, se lidos com atenção, revelam resistências, seja ao cristianismo que se impôs à força aos velhos rituais, seja ao machismo, a partir das estratégias de sobrevivência das suas protagonistas. Cada vez mais eu gosto de ir na fonte dos contos de fadas, principalmente quando são mulheres que os coletam e recontam com base em tradições antigas e anteriores à interferência masculina nos seus significados. As princesas, fadas, bruxas, feiticeiras e baba yagas das florestas sempre salvaram a si mesmas, nem que fosse por resistirem ao inferno da dominação e violência masculinas... (Princesas, bruxas e uma sardinha na brasa: contos de fadas para pensar sobre o papel da mulher, Helena Gomes e Geni Souza, editora Biruta, 2019, São Paulo - SP) #metadeleitura2022 #livro16 #contosdefadas #mardehistorias #leiturasdatraca
Todas as histórias humanas têm berço comum, o mesmo de onde todos viemos, o continente africano. Da África, elas se espalharam no rastro do fluxo migratório dos povos ancestrais, seja por vontade, quando os primeiros seres humanos se espalharam pela Terra, seja de forma compulsória e violenta, quando seres humanos foram traficados como escravizados. As histórias consolaram os desterrados, serviram de testemunho das injúrias sofridas e também diminuíram o pavor da noite dos nômades, muito antes da existência das cidades, do dinheiro, das disputas de poder. Contos Negros [Faro Editorial @editorafarooficial, 2020] reúne as histórias coletadas e reunidas da tradição oral do interior do Brasil por Ruth Guimarães, importante intelectual, escritora e folclorista negra. Cada miniconto desse livro, que já está incorporado à minha modesta coleção de contos de fadas, é mais uma camada da areia do tempo que é retirada do grande sítio arqueológico que é a memória coletiva da nossa espécie. O que me fascina na literatura – e, principalmente, na mitologia e nos contos de fadas -, é perceber os pontos de contato e de distanciamento das muitas versões do mesmo conto. Como se cada povo somasse seu legado ao que veio antes e costurasse mais um tijolinho de tecido nessa grande colcha de retalhos, diversa e múltipla, que é a vida... #metadeleitura2022 #livro13 #ruthguimaraes #contosdefadas #lendasdobrasil #leiturasdatraca #mardehistorias
Chaplin sempre traz luzes para a ribalta
Sou totalmente suspeita, Mariel. Minha paixão por ele começou ainda na infância, bem pequena mesmo, antes de me entender direito por gente, quando assistia reprises de filmes mudos na tv, nas manhãzinhas de domingo, junto com minha irmã. Então tem primeiro a memória afetiva dessa época e depois, mais crescida, o assombro com o gênio! Abraços
Somos dois. Sou completamente apaixonado pelo talento do artista, os argumentos dos filmes e a facilidade com que ele se expressa. O Último discurso é, pra mim, a cena mais exuberante e o texto mais impressionante daquilo que conheço do cinema. Abraço.