(Im)paciente Crônica: Liderar não é carregar o mundo

A revista feminina Glamour, edição de julho, traz algumas entrevistas com mulheres poderosas e que ocupam o topo de grandes corporações. Uma das CEO entrevistadas é a criadora do The Huffington Post, Arianna Huffington, conhecida workaholic que, após ter um colapso, repensou a vida e até lançou livro sobre essa transformação. Ela continua sendo uma fera da comunicação e figura central de um negócio próspero, mas reaprendeu a valorizar outras coisas na vida, além do trabalho. A entrevista com Arianna e outras executivas, como Frida Giannini, chefona da Gucci; além de algumas coisinhas que ao longo dos quase 20 anos que exerço o jornalismo, observei nas redações da vida, me inspiraram a escrever a (Im)paciente Crônica da vez. Vamos a ela:

atlas

Liderar não é carregar o mundo nas costas

Como dizem os antropólogos, cada um fala do lugar do mundo onde se encontra. O meu lugar, para esse texto, é o de jornalista e profissional que tanto já foi comandada, quanto já comandou equipes. Existe uma perversa ideia, perpetuada inclusive pelos altos escalões e donos das empresas de comunicação em geral, que o editor chefe, ou editor coordenador de determinada editoria / veículo é uma espécie de Atlas contemporâneo e que portanto, precisa carregar o mundo nas costas sem praguejar (embora o Atlas mitológico passasse a eternidade aos prantos). Afinal, o editor chefe ganha mais que os outros editores e portanto, ele tem de dar mais sangue também. Uma troca justa. Mas não é!

Falo de editores chefes ou coordenadores porque é a realidade que conheço, mas a regra vale para qualquer profissional no comando. O chefe é quem manda e os subchefes (no caso da minha realidade, editores de área / editorias / de uma das revistas do portfólio de uma grande editora, etc), para não se comprometerem, atribuem a ele a responsabilidade de tomar todas as decisões, desde as macro, que são a sua responsabilidade, até as micro, como solicitar compra de tinta para a impressora. Ele ganha mais, então ele se ferra mais, é a regra, infelizmente.

O conceito de liderança evoluiu e algumas empresas sensatas já adotam essas novas premissas, sejas elas grandes conglomerados ou pequenas companhias. O líder não é mais o cara que trabalha 18 horas por dia, toma todas as decisões sozinho e assume o bônus e o ônus. Liderar, atualmente, é antes de mais nada, inspirar as pessoas a crescerem, motivá-las, dar a elas chances reais de mostrarem seus talentos, de aprimorarem seus conhecimentos. Um líder de verdade reconhece o valor da sua equipe, dá os créditos para cada membro dela que tenha contribuído com sugestões, ideias e soluções. Um líder de verdade é um ser humano capaz de agir com justiça, de ouvir argumentos, de rever suas próprias falhas e posturas, de evoluir junto com a equipe.

No jornalismo, os editores chefes ou coordenadores deveriam ser estimulados a serem esse tipo de líder positivo e seus subeditores, ou editores de área, deveriam ser incentivados a assumirem suas responsabilidades ao invés de se escorarem na figura do chefe. Uma redação é uma linha de produção, só que o nosso produto é notícia e não um carro ou outro bem de consumo. Na cadeia produtiva da notícia existem muitas etapas e no ambiente da redação, diversas figuras que vão do estagiário de jornalismo ao diretor de jornalismo. Cada um tem o seu papel e quando todos têm consciência dele, o trabalho flui menos sofrido.

Só que essa realidade perfeita ainda é utópica. Com raras exceções, o que se vê é um editor chefe sobrecarregado e editores de área que se contentam em fechar páginas, sem muito compromisso em resolver as demandas das suas respectivas áreas. O que se vê também é uma quantidade enorme de repórteres omissos, que apuram mal, escrevem toscamente e entregam ao editor de área textos cheios de buracos nas informações centrais. O que se vê são estagiários que ainda estão na escola, mas são deslumbrados e cheios de vícios como comentar temas polêmicos e replicar informações sem o cuidado de checar a procedência, até porque, ninguém está interessado em ensiná-los.

É um jornalismo acrítico, burocratizado e preguiçoso que se vem praticando não só no Brasil, mas no mundo todo, onde ocorrem demissões em massa de jornalistas. Quando a sociedade cobra, é simples: bota-se a culpa no advento da internet e das mídias sociais, acusados a três por dois de matarem o jornalismo, quando na verdade, os próprios jornalistas, seja por excesso de trabalho, cansaço ou desinteresse, é que estão matando a profissão por dentro. Ajudando, com a própria apatia, a acabar com o respeito ao jornalismo como uma área de interesse social e necessária para a existência da liberdade de expressão e da democracia. Um mundo sem jornalismo crítico e combativo é um mundo pronto para receber notícias que só vendem um lado da questão e que portanto, serve a interesses nem sempre claros, honestos e justos socialmente. Ditadores tratam logo de mandar matar jornalistas e fechar redações, nos mostra a história.

Voltando a questão da sobrecarga de cobranças sobre a figura do coordenador ou editor chefe, penso em exemplos simples e cotidianos para ilustrar minhas reflexões.

Exemplo 1 – Suponhamos que uma editora tenha no portfólio um determinado número de revistas e que cada uma dessas revistas tenha seu editor responsável, que assina a edição com seu nome e DRT (registro profissional). Essa mesma empresa tem uma única equipe de reportagem para servir a todas as revistas. Isso significa que, cada editor responsável pela sua revista, será também responsável por gerenciar as demandas para a execução da edição de um determinado mês e pautar essa equipe. Mesmo que exista a figura de um editor central nesta companhia, alguém que passe o dia na redação, que gerencie e dê apoio logístico aos demais editores das respectivas revistas, não cabe a esse editor central resolver as questões micro da produção, como por exemplo, definir quem vai viajar para cobrir uma pauta. O máximo que ocorre, numa situação dessas, é o editor geral ser informado de que há uma necessidade de se pautar a cobertura e que o editor da revista B ou C precisará de um repórter para a tarefa. O editor da revista B ou C entrará em contato com a equipe e checará com os repórteres quem pode viajar, quem está pendurado em outra pauta pedida por outro editor etc. Isso é ser proativo e responsável, manter o compromisso assumido no momento em que se acerta com o dono da editora, o valor mensal (ou por edição) para aquela determinada revista.

Omissão é deixar de cumprir a responsabilidade por preguiça ou por medo de se “queimar”, caso algo dê errado na cobertura. É muito mais fácil dizer que “fulano” pautou errado. Omissão e falta de interesse em cumprir o compromisso firmado ao se aceitar o trabalho é usar  a desculpa do “eu não quis passar por cima da hierarquia e deixei para o editor geral resolver quem vai viajar e deixei para ele também a tarefa de orientar o repórter na cobertura”. Sejamos sensatos: como uma pessoa que não vive o cotidiano de determinada revista pode orientar melhor o repórter do que quem é responsável por editar essa revista? Que tipo de jornalismo se pratica quando alguém assume o compromisso por um veículo e joga as responsabilidades para terceiros?

Exemplo 2 – O editor chefe de uma determinada editoria, digamos que a de Geral, chega de uma reunião com a direção do jornal trazendo a demanda da elaboração de um caderno especial de Astronomia. Nesse caderno, será preciso listar os eclipses lunares dos últimos 50 anos, visíveis em Salvador. Um editor de área ficará responsável por cuidar da execução do caderno, outro editor fará a pauta após reunião com a equipe, em que todos dão suas sugestões e contribuições e irá orientar os repórteres na apuração das pautas. A equipe inteira de edição fará o fechamento do dito caderno especial. Ao longo do processo, as pessoas irão se comunicar e todos saberão quais são as tarefas, quem vai realizá-las e como está o andamento do trabalho. É para isso que existem as reuniões gerais das editorias. Fica decidido que um estagiário vai pesquisar os eclipses e para isso precisa ir até o acervo do jornal olhar antigos exemplares. Suponhamos que ele já pesquisou na internet e não encontrou esses dados. No acervo do jornal, o estagiário descobre que na coleção de exemplares dos últimos 50 anos faltam jornais de dez anos inteiros, que foram comidos pelas traças. O que o estagiário faz? Vai até o coordenador geral e diz que a tarefa não pode ser feita porque no acervo não existem os exemplares procurados, ou vai até o editor de quem recebeu a tarefa em busca de orientação? E esse editor, ele avisa ao editor chefe que não dá para fazer o trabalho porque as traças comeram o acervo, ou ele busca alternativas, como enviar o estagiário à biblioteca central da cidade?

São exemplos que, para quem é de fora, podem parecer esquisitos. Mas, quem é de dentro de uma redação, seja de jornal, revista, site etc, entende o que significa cada omissão, descuido ou falta de interesse de um colega. Significa a sobrecarga de outro colega e uma cobrança desmedida e injusta sobre o editor coordenador.

Quem coordena, quem lidera uma equipe, precisa ter membros nessa equipe que sejam dignos de confiança e capazes de executar suas tarefas, mas não como robôs que recebem demandas e apenas as cumprem, sem questionar e sem pensar no que estão fazendo, mecanicamente. Quem é editor da revista B ou C, ou do caderno D ou E de determinada empresa ou veículo, tem de pensar o processo, sugerir, interagir, resolver as questões operacionais do trabalho. Ao editor coordenador cabe trazer as demandas da direção da empresa, cabe resolver questões macro. No exemplo 1, caberia a um editor chefe, por exemplo, checar com o dono da empresa se há orçamento para contratar um free lancer, caso nenhum repórter fixo da equipe tenha condições de fazer a tal viagem. E, em caso positivo, liberar essa contratação. No exemplo 2, após todas as tentativas possíveis de viabilizar o tal caderno astronômico e sendo impossível a tarefa, caberia ao editor coordenador orientar a equipe para que o caderno ou seja abortado ou que a sua abordagem mude de foco, ajudando a traçar um novo plano de ação. Na segunda hipótese, claro, ele teria de informar ao diretor de redação que o foco da cobertura mudou e avisar ao Departamento de Marketing para mudar a campanha chamando leitores para o caderno.

Isso não é pouco trabalho, porque geralmente, o editor chefe de uma determinada editoria de um jornal diário, precisa possibilitar que a equipe execute projetos especiais (como o caderno do exemplo), mas que também bote o jornal diário na rua! No caso do editor coordenador de uma empresa com várias revistas no portfólio, além de atender às demandas macro da revista A e do editor da revista A, ele precisa atender também as mesmas coisas nas revistas B, C, D, E… quantas a empresa tenha de botar na rua por semana, por mês ou a cada dois/três meses. Isso, quando não acontece da mesma pessoa responder pela redação e ao mesmo tempo editar uma das revistas do portfólio, pensando pauta, orientando repórter etc.

Não são raros os casos nas redações brasileiras em que o editor coordenador acumula também a função de editor de área. Sendo que a jornada máxima permitida são 8 horas diárias e ao menos um dia de folga na semana, para as pessoas descansarem a mente, o espírito, cuidarem da saúde e dos seus afetos (família, amigos, namoros…). Essa pausa é responsável por manter a motivação e a criatividade do editor chefe, da mesma forma que do resto da equipe. Que tipo de mágica os donos das empresas de comunicação esperam que um ser humano sobrecarregado, estressado e amargurado consiga realizar? Jornalismo, antes de qualquer coisa, também é uma forma de contar histórias e boas histórias são contadas por mentes leves e não por pessoas exaustas e impacientes de tanto cansaço!

A relação de trabalho desse coordenador se torna desumana e injusta. E ele também acaba replicando isso com a sua equipe. Espera-se dele não que seja aquele líder lá do começo do texto, mas um super homem (ou super mulher), um bombeiro pronto para apagar incêndios, um escudo humano que leva no lombo, enquanto quem deveria ter cumprido o seu dever, se omite e descansa com a família nos finais de semana e segue a vida sem dor na consciência por entregar resultados medíocres e nunca responder por isso.

O salário também fica defasado diante de tantas tarefas e demandas que se acumulam e, sem querer, essa pessoa transformada à força em super herói (heroína) se vê choramingando como Atlas, adoece, infarta, joga doses absurdas de cortizol no sangue por conta do estresse, engorda a ponto de ter risco de AVC, surta como a Arianna Huffington, ou se desencanta com a profissão e passa também a matar o jornalismo por dentro, cada dia um pouquinho mais. Se não morrer antes, tentando manter a dignidade da profissão e a própria.

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