Ouro, terceiro romance de Chris Cleave (segundo do autor lançado no Brasil, depois de Pequena Abelha) é um drama familiar ambientado no universo do ciclismo de elite, na Grã-Bretanha. Entre competições olímpicas e treinamento pesado para fabricar “super humanos” capazes de vencer os limites do corpo em busca da glória efêmera do podium, o autor nos apresenta as vidas dos atletas Kate, Jack e Zoe, do técnico dos três, Tom, e da pequena Sophia, uma garotinha de oito anos que luta contra a leucemia.
O livro tem momentos encantadores e outros comoventes. Cleave é um bom contador de histórias e sabe tecer tramas que se entrecruzam com bastante habilidade. Sophia é uma criança cativante e segura boa parte da trama sozinha. Seu fascínio por Guerra nas Estrelas e os devaneios dela, que se vê como uma pequena Jedi, propiciam os momentos de leveza a uma narrativa densa.
A história gira em torno da rivalidade de Kate e Zoe, as duas maiores promessas do ciclismo britânico, e do triângulo amoroso com Jack, outro atleta considerado um “deus” (em beleza e em desempenho) dos velódromos. Tom, o técnico, é um ex-ciclista amargurado por ter perdido a medalha de ouro por milésimos de segundo e sua obsessão é levar os três jovens à glória olímpica. Sophia é filha de Kate e Jack e por causa da sua doença, a mãe abre mão de duas olimpíadas em que era a favorita ao primeiro lugar.
Os elementos para tecer um drama espetacular estão todos presentes na vida e nas frustrações de cada um desses personagens e em muitos momentos, o autor consegue empolgar o leitor. Ainda assim, a leitura de Ouro é daquelas que não engrena logo de primeira. Ao menos para os leitores que se interessam pouco, ou nada, por esportes, o livro pode revelar trechos bem tediosos e cheios de tecnicismo.
Quando foca na história pessoal das personagens, nos seus traumas de infância, nas decepções amorosas, ou na luta da pequena Sophia e de sua mãe para vencerem o câncer, o livro prende a atenção. Mas quando gasta páginas e mais páginas para descrever o treinamento de um ciclista olímpico, ou enumerando as qualidades de trajes especiais de corrida ou de bicicletas aerodinâmicas especialmente projetadas para as competições, o autor cansa, dá sono e a vontade é largar a leitura pela metade.
É preciso disposição para vencer as páginas cansativas. A leitura de Ouro, que não à toa traz no título o nome de um metal nobre que dá trabalho para ser encontrado na natureza, é praticamente uma garimpagem. Haja paciência para lavrar as muitas camadas de descrições desnecessárias para chegar ao núcleo valioso da história.
Além disso, Cleave desconsidera completamente o lado B do ciclismo de elite. Em nenhum momento (embora o livro seja um romance e não uma reportagem) o autor toca no polêmico e espinhoso tema do dopping. Grandes nomes do ciclismo mundial, em fim de carreira, já deram declarações bombásticas dizendo que usaram substâncias ilícitas para vencer. O autor chega mesmo a descrever, sem muita profundidade, os treinamentos cruéis e a super exposição à mídia, que muitas vezes “enlouquece” jovens promessas do esporte. Mas não escreve uma linha sobre dopping.
Em meio a personagens com histórias de vida tão disfuncionais como são os de Ouro, é inverosímel não se falar sequer na tentação do dopping, que ronda as quadras e campos de diversas modalidades esportivas. Só para se ter uma ideia da complexidade dos protagonistas de Cleave, Tom não fala com o próprio filho, Jack é um jovem escocês que foi salvo da miséria pelo esporte, e Kate e Zoe viveram situações terríveis de perda e abandono na infância, que de certa forma ajudaram a moldar suas personalidades.
Enquanto Tom é omisso em muitas situações, Jack, mesmo casado e pai de uma criança doente, parece sofrer de síndrome de Peter Pan e ser incapaz de assumir responsabilidades, enquanto Zoe é egocêntrica, egoísta e emocionalmente instável. Já Kate, abnegada, responsável, emocionalmente madura e de alma gentil, faz o contraponto com a rival, que é também sua melhor amiga.
Ingenuidade – A sensação é que, por ser também ciclista amador e por amar profundamente o esporte, o autor tenta preservar a aura mítica que envolve os atletas. Não que se esperasse apologia ao uso de drogas ou que se imagine que todo ciclista faça uso dessas substâncias. Mas ao menos que o autor mostrasse que nesse mundo olímpico existem aqueles que precisam muitas vezes lutar contra pressões e tentações. É ingênuo imaginar que todo esportista (e seus técnicos e patrocinadores) apostam milhões apenas em treino duro e dieta balanceada. Mesmo a ficção precisa ser verossímil ou o leitor se sente subestimado.
No entanto, apesar de derrapar na pista e ter uma condução irregular, Ouro tem momentos interessantes e se não chega a ser tão magistral quanto Pequena Abelha, ao menos mantém a dignidade do autor e mostra que Cleave tem um talento legítimo para criar histórias e personagens que conquistam por sua profunda humanidade.
Ficha Técnica:
Autor: Chris Cleave
Tradução: Cláudio Carina
Editora: Intrínseca
336 páginas
R$ 29,90