Meus ex-chefes de reportagem cantilenavam nos meus ouvidos e nos dos outros focas: “repórter bom é aquele que sabe se pautar, ou então que sempre consegue ir além da pauta que recebe, enxergando muito para lá da superfície das coisas.” Também catequizavam: “pauta é um direcionamento, um norte, precisa ter angulação, gancho, um pretexto para que a matéria seja feita. Afinal por que é que você está falando desse assunto? Sempre se pergunte: o que eu gostaria de saber se estivesse lendo essa matéria?”
São regrinhas básicas do jornalismo. E era só esse básico que os chefes nos davam. Era com esse mínimo de informação (mas carregado de um máximo de significados), que tínhamos de nos virar. Além dessas pequenas lições, havia as discussões de pauta, que aconteciam antes e no decorrer da apuração; e aconteciam ainda durante a construção da matéria e não depois, quando o eventual estrago (leia-se pauta mal apurada = a matéria mal escrita) já estivesse na página. De vez em quando ocorria ter de se apagar incêndio, fazer correções já com o fechamento estourado. Nenhum repórter nascia sabendo, eles se faziam ao longo de meses e anos de trabalho árduo. E o bom repórter era aquele que, mesmo depois de anos e anos de treino, de lapidação, ainda estava em eterna busca de aprimoramento, ávido por saber mais, por cavar mais fundo.
Nada vinha de graça, muito menos as lições aprendidas no dia a dia da redação. Primeiro, tínhamos de trilhar o caminho das pedras, correr atrás de fontes, tanto de entrevista quanto de pesquisa, levantar todos os dados possíveis e imagináveis, identificar quais lacunas da história precisavam ser preenchidas. E após mostrarmos o tanto de esforço empreendido é que os chefes de reportagem e editores entravam no circuito para apontar caminhos que, na nossa inexperiência, ou no afã da apuração, esquecíamos de tentar. Nessas horas, além de guardar mais uma lição que na escola os professores não ensinavam, nos sentíamos um pouco constrangidos por não ter enxergado o óbvio. Era bom descobrir que havia milhares de possibilidades onde antes só conseguíamos enxergar um caminho bloqueado por negativas e burocracias, principalmente quando a pauta envolvia informações e órgãos oficiais.
Não tínhamos Facebook, nem Twitter, o Google era quase um recém-nascido. Visitas aos arquivos públicos, bibliotecas, acervos particulares, eram quase diárias. E isso nos moldou para sabermos, no advento dos super buscadores e das redes sociais, a saber escarafunchar a internet com a mesma tenacidade com que revirávamos livros velhos, documentos empoeirados e jornais mofados de mil oitocentos e antigamente.
O mundo não era perfeito, havia aqueles que trabalhavam mal e porcamente também. Mas a maioria tinha tesão no que fazia e tinha ambição em assinar manchetes, emplacar reportagens de capa. Nem todos eram modelos de ética e respeito, havia os deslumbrados, os que achavam que jornalismo era glamour, mas uma parte considerável entendia a função social da profissão, a importância de traduzir informações e divulgá-las para que a sociedade ficasse ciente dos mandos e desmandos do poder.
Independente da minha visão romântica e saudosa do jornalismo praticado pela minha geração e por aquelas que me precederam, havia sim, vida pulsante nas redações, e elas não eram as brilhantes exceções de agora, eram a regra.
É lamentável que com o advento de tantas tecnologias e com a facilidade de se obter informações atualmente, haja um declínio tão profundo na qualidade dos novos jornalistas, salvando-se, lógico, as honrosas exceções. O problema está nos cursos, liberados a três por dois pelo MEC? Está na formação de base dos graduandos, que levam para a faculdade e para a redação, as deficiências dos ensinos fundamental e médio? Está na educação recebida em casa, que não ensina mais valores como respeito, ética, compromisso e comprometimento aos jovens? Está no “mal-estar da civilização contemporânea”, nas inquietações e no vazio existencial e intelectual em que a humanidade afunda? Está na incapacidade (ou no egoísmo) da geração anterior (a minha) de ensinar aquilo que tão arduamente aprendeu? Está na falta de interesse da turma mais nova em buscar esse conhecimento por meios próprios? Seria falta de ambição, falta de tesão, falta de propósito ao escolher uma profissão que exige tanto? Ou a crise atual é uma soma de todos esses fatores, com pesos diferentes para cada um deles?
Quando discuto o assunto com gente mais nova, o que percebo acima de tudo é uma incapacidade enorme de ouvir e uma má vontade em aceitar as próprias limitações e as alheias. E sem aceitar que somos limitados, não temos como buscar a evolução. É clichê de livro de autoajuda, mas é verdade. A verdade, na maioria das vezes, é óbvia, nós é que complicamos e distorcemos o caminho. E percebo ainda uma intolerância enorme a ouvir críticas. Um excesso de sensibilidade e de melindre. Uma tendência a achar que qualquer julgamento contrário àquilo que se deseja ouvir, é assédio.
Ninguém quer ser criticado, questionado, levado a refazer um trabalho que ficou ruim, ou a melhorar outro que poderia superar as expectativas. A norma é acomodar-se na média, porque dá menos trabalho. A norma é estar eternamente na defensiva.
Tenho 38 anos e houve um tempo em que, de forma equivocada, me orgulhava de ter pertencido a uma geração promissora de repórteres que a seu modo e com pequeno, médio ou amplo alcance, escreveram uma parte da história. Ainda me orgulho, pelas coisas bacanas que fizemos, seja na cobertura diária ou nas especiais, seja apurando ou fazendo produção de pautas. Mas hoje em dia tento desvincular esse orgulho positivo daquele outro pernicioso e negativo que atende pelo nome de soberba. Meu equívoco não era sentir orgulho da repórter que vive em mim, mas ter a soberba de me achar melhor por isso. Não sei se consigo vencer a vaidade sempre, ou se, para as gerações atuais, que me veem com o nariz empinadinho (ele é assim de nascença) atravessando os corredores da redação, não passo de uma metida a besta, tirada a intelectual e com ares de pseudoacadêmica!
É fato também que as gerações anteriores sempre acreditam que o “seu tempo” é melhor que o atual. E que as gerações atuais, sempre tentam desconstruir, numa iconoclastia cega, típica da rebeldia juvenil, tudo o que foi feito por quem veio antes, mesmo que sejam coisas boas. Infelizmente, esse é um erro estratégico da humanidade, que caminha em ciclos infinitos de altos e baixos.
Li uma matéria na Revista Época dessa semana (número 768), em que é dito que a pedra lascada é mais revolucionária que o iphone. A reportagem mostra os avanços da humanidade desde que os primeiros hominídios criaram essa ferramenta rudimentar que possibilitou a caça e a defesa do bando, até chegar nos aparelhos tecnológicos atuais e conclui que a humanidade vive uma crise de criatividade profunda. Nada de tão revolucionário (para o bem ou para o mal) foi inventado nas últimas décadas e todas as novidades surgidas no alvorecer do século XXI derivam do computador, que é invenção da segunda metade do século XX.
Essas baixas criativas, ainda segundo a reportagem, são cíclicas e anunciam futuros surtos evolutivos, ao menos é o que dizem os cientistas mais otimistas. Pegando carona nesse otimismo, espero que a crise na produção jornalística atual seja só o prenúncio de um grande salto de qualidade em um futuro próximo. Não se pode mais fazer jornalismo em 2013, como se fazia na época do império, mas à evolução resultante do advento das midias sociais, do jornalismo participativo, dos smartphones e cia, é preciso somar-se o que de positivo esse outro jornalismo dos primórdios legou à geração atual. Do contrário, corre-se o risco de cair no paradoxo da compra de milhares de tablets e e-readers para os professores e escolas brasileiras: de que adianta um super leitor digital, se o leitor (humano) não tem capacidade de ler criticamente o que a tela exibe? Do que adianta um repórter super equipado com as mais modernas ferramentas de comunicação, se ele não sabe o que fazer com a informação apurada, ou pior, não sabe nem como apurar?
A turma a qual pertenço, dos migrantes digitais, embora transite com certa desenvoltura (há exceções nesse caso também, óbvio) na tal da pós-modernidade, é paradoxalmente muito nostálgica. E essas reflexões, talvez, sejam só fruto da minha saudade…
Drica de Deus! quando eu crescer quero pensar e escrever bem parecido com isto aí. Até mesmo porque a tua reflexão vai – inversamente ao processo de vida – permanecer atualíssima daqui a um bom par de décadas. Parabéns, moça!
Obrigada, Cacolino :)