Nem todo baiano estreia

CarnavalQue me perdoem Dorival Caymmi e Nizan Guanaes, mas nem todo baiano estreia, a maioria só nasce de forma genérica e desglamourizada. Além disso, é bom avisar que nem todo baiano (leia-se soteropolitano) gosta de Carnaval. Ultimamente, cada vez menos gente aprecia a festa, nem tanto pela possibilidade de ficar sete dias entregue à celebração sabe-se lá de quê e muito mais pelos transtornos antes, durante e depois que a folia causa aos moradores da cidade. Estão aí as pesquisas que comprovam que mais de 70% da população de Salvador não brinca o Carnaval. A festa, há muito tempo, é feita para turistas, celebridades e sub-celebridades, e para uma parcela de baianos de outras cidades do Estado. Esse ano, os artistas da capital adotaram como slogan o Carnaval sem cordas, “de participação popular”, como lembrou uma das estrelas do axé music em entrevista na TV. Nem isso é novidade no Carnaval de Salvador. Já se ensaia uma “retomada da rua” há pelo menos dois ou três carnavais. E isso porque, dizem os entendidos no assunto, a folia tornou-se tão excludente e elitizada que afastou o povo. E sem povo, não tem para quem as marcas patrocinadoras divulgarem seus outdoors, banners, balões e toda aquela parafernália publicitária que polui a paisagem da cidade durante o Carnaval (no resto do ano também, mas um pouco menos). É tanta propaganda que quase não se vê as alegorias dos blocos (mas restam poucos blocos com alegorias nas ruas de Salvador). Dia desses, uma amiga bem instruída e informada lembrou que o Carnaval, ao menos no Brasil, nasceu a partir das iniciativas das elites. O Entrudo, avô do Carnaval atual, era festa de grã-fino, ao menos na origem, embora o povão também participasse, na marra, com a sua cota de prisões e porradas. Nos anos 20/30 do século XX, estão aí os historiadores para confirmar, o Carnaval baseava-se nos desfiles dos “corsos” e outras agremiações de gente rica, que desfilava em carros alegóricos. As festas nos clubes nos anos 50/60, e isso quem me contou foi minha mãe que viveu a época, era coisa para rico, ou classe média, e branco. Certas agremiações de Salvador, que hoje amargam decadência, discriminavam e nem deixavam passar da porta negros e mulatos. Tinha manifestação popular? Tinha, geralmente nas comunidades periféricas, mas havia muita repressão também, até porque, associava-se o batuque dos pobres (e pretos) a marginalidade. Os blocos afro, que são as verdadeiras estrelas da festa, até porque são eles que sempre atraíram gente como Paul Simon, Michael Jackson (que deus o tenha!), Spike Lee (ele está filmando um documentário em Salvador no Carnaval de 2013 e começou pelas saídas dos afro Olodum e Ilê Aiyê), até hoje brigam para garantir espaço na festa. Este ano teve o Cortejo do Afródromo e a mídia ávida por uma novidade, quase canibaliza o desfile. Carlinhos Brown, que em bom baianês “não come regue”, soltou o verbo e reclamou em alto  e bom som: os blocos afro querem visibilidade e o direito de mostrar sua arte e sua beleza, querem ser filmados e divulgados como “coisa da bahia”, da cultura de raíz, mas precisam de espaço na avenida para desfilar sem que fotógrafos e cinegrafistas invadam de tal forma que impossibilite a evolução das alas de percussão e dança. É a seca, Brown. Foram tantos anos de mais do mesmo que a imprensa está sedenta no deserto. Até mesmo quem paga fortunas para brincar no camarote não aguenta mais a falta de novidade do Carnaval de Salvador. O cortejo é um oásis em meio a um mar de insensatez, estupidez e equívocos que compõem a festa soteropolitana. Para quem vê a folia do alto do camarote, ou para quem é pago com o equivalente a um ou dois anos de salário de um trabalhador comum para sorrir e acenar durante 15 minutos em um desses camarotes, o Carnaval de Salvador é descrito com adjetivos como “lindo demais”, “pura energia”, “eletrizante” e outros do mesmo quilate. Mas, para aqueles que curtem a festa sem grana para pagar o camarote ou o bloco, o Carnaval é um inferno. Vide a festa deste ano, em que nem a polícia consegue “botar moral” e impedir brigas, empurrões, socos e chutes nos circuitos da festa. E haja gente com a cara quebrada. No fim das contas, a tão sonhada pipoca democrática de Salvador, não importa a cor da pele e a classe social a que pertença, transforma-se em pura barbárie. Os circuitos são violentos, mesmo que o governador, do alto do seu camarote oficial, não enxergue ou não considere caras quebradas e arrastões como estatística de violência. E a volta para casa? Ônibus lotados, que levam até duas horas para passar nos pontos e com gente viajando pendurada em portas e janelas, sem falar naqueles que despencam no asfalto. Mas ir para a rua é preciso, afinal, disseram que Salvador é a terra da alegria, da folia, da orgia e da putaria. Li um artigo assinado pelo antropólogo Roberto DaMatta, na Revista Época desta semana (nº 768), em que ele fala do Carnaval como a marca identitária do Brasil para o exterior. Fiquei triste em ver que um homem da ciência só endossa o discurso de décadas dos órgãos de turismo nacional, aquele que vendeu e ainda vende o Brasil como o destino do samba, suor, cerveja, festa eterna e mulheres disponíveis. Colado a esse discurso vem os outros estereótipos, como país de corrupção atávica e paraíso para criminosos internacionais se esconderem embaixo dos coqueirais de alguma praia paradisíaca. Gostaria que o Brasil e Salvador fossem bem mais que esse caldeirão de clichês, muitos deles infelizmente verdadeiros (como a corrupção atávica). Com todo o respeito e nostalgia que sinto pela Bahia de Caymmi, é fato que ela não existe mais para além das letras das suas canções ou dos romances do comprade Jorge Amado, que li avidamente na adolescência e por quem tenho um grande respeito. Mas Jorge e Dorival e tantos outros da mesma geração, foram cronistas de uma época em que Salvador era um presépio pitoresco e perfumado de dendê. É preciso ler/ouvir/ver o que essa turma produziu dentro de um contexto em que Salvador, e talvez o mundo como um todo, eram mais inocentes (mas nem por isso menos desiguais). Mas hoje, para quem mora nessa terra, infelizmente, Salvador é só uma cidade abandonada à própria sorte, depositando esperanças, que sabe-se lá se serão cumpridas, em um jovem prefeito de uma velha família, e anestesiada por sete dias de folia. Nizan, meu velho, estamos muito mais para a “Triste Bahia” de Gregório. Apesar da propaganda massiva e da quase obrigação de ser folião só por ter nascido em Salvador,”We are NOT Carnaval”. Ao menos, nem todos nós…

Atualização:

Carnaval

Encontrei circulando nas redes sociais, esse infográfico, que usa dados de uma pesquisa de 2010 da Secretaria de Cultura (Secult). Só para ilustrar a informação de que mais de 70% dos soteropolitanos não brinca o Carnaval. Vale lembrar que a cidade tem quase três milhões de habitantes e recebe um fluxo grande de turistas de outras cidades baianas, estados ou países durante a festa. Encontrei também essa entrevista com o antropólogo Roberto Albergaria, e essa outra com João Jorge, presidente do Olodum, na Folha On Line desta segunda. Os links podem interessar a quem quiser saber mais sobre a esquizofrenia que é o Carnaval de Salvador.

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10 pensamentos sobre “Nem todo baiano estreia

  1. Andreia, gostei muito do texto e para mim foi bem esclarecedor, pois não tenho noção do que seja o carnaval para quem mora em Salvador. Eu que sou de Vitória, ES, tinha uma visão mais glamourosa do carnaval baiano, super energia, cor e alegria. Claro que isso existe, também. Mas o outro lado faz pensar. Fora que você escreve muito bem! Abraços!!!!

    • Que bom que você gostou, Mária, e que te serviu de esclarecimento. A ideia não é que o Carnaval deixe de existir em Salvador, mas este Carnaval que está aí precisa ser repensado, para o bem dos moradores da cidade e também para quem nos visita. Beijos

    • Oi Araci,
      Na verdade, para o município e o estado, o Carnaval de Salvador é um pacote de despesas e não de arrecadação. Embora a festa tenha cotas de patrocinio privado, o Estado e o Município investem grana na festa e essa grana, visto que tanto município quanto estado não geram receita como uma indústria, por exemplo, é obtida através dos nossos impostos. Nós, moradores da cidade que ficamos impedidos de ir e vir no Carnaval, que ficamos sem policiamento porque os PMs foram todos relocados para os circuitos, que ficamos sem transporte coletivo, porque os ônibus são relocados para os circuitos, que ficamos sem direito a um lazer silencioso e calmo, porque tudo em Salvador durante sete dias gira em torno de folia, nós que não temos o direito de não gostar da muvuca, é que pagamos a festa, pois somos, com impostos, taxas e tributos, a fonte geradora de receita do poder público. Pagamos essa festa e pagamos os prejuízos gerados com o fim dela, como recapeamento de asfalto, reconstrução de passeios e praças onde ficam os camarotes. Quem enriquece com o Carnaval são os donos de bloco, trios, camarotes e algumas estrelas do axé, visto que entre os artistas há uma desigualdade assustadora, a ponto de termos patrocínios milionários para quem bomba na mídia, mas pouco contribuiu para a cultura baiana; enquanto outros que deram e dão contribuições criativas enormes ficam à margem. O Carnaval de Salvador, que é vendido aos quatro cantos do mundo como “a grande festa da democracia racial, social e musical” é na verdade uma das manifestações mais excludentes e segregárias desse país. Salvador nunca abandonou as origens da festa, quando encarapitada em studebakers, a fina flor da sociedade dos anos 20/30 desfilava em seus corsos pela rua Chile. O restante, batuques, bandinhas de bairro, blocos de sujo, mascarados e os blocos afro, com toda a beleza que essas manifestações possuem, com a tradição de raíz da nossa cultura de matriz africana, são só tentativas populares de resistência que, quando é da conveniência dos donos da festa, ganham seus cinco minutinhos de fama.
      Abraços e muito obrigada pela visita e pelo comentário!

  2. Reparado bem, Andreia e Lila têm razão. São dois ângulos diferentes: Andreia esta olhando pelo lado “técnico”, e Lila pelo lado “emocional”. As pessoas que têm consciência do que está ocorrendo “por trás da festa”, se afasta (ficou legal, né? festa, se afasta rsrs). As pessoas movidas pela mídia (a maioria), não quer ficar fora do “circo”. Mas eu vivo um carnaval “romântico”: Armo minha charanga, ou batucada, ou etc, de travestidos e o coro come em qualquer lugar. Para mim, carnaval é O DIA, e em qualquer lugar ele pode acontecer. Não é somente nos “circuitos oficiais”. Então, se dependesse de mim, a mídia teria que circular muito para mostrar o carnaval de Salvador, porque teria que ir a muitos bairros. Mas, infelizmente, todo mundo quer se ver na TV.

    • Oi A.J.,
      É exatamente isso, um olhar mais crítico e reflexivo e menos midiático sobre o Carnaval de Salvador. Até porque, a fórmula que está aí já vem dando sinais de desgaste há vários anos. Os moradores da cidade, uma parte considerável deles, não quer mais esse carnaval, isso é notório. A sua forma “romântica” de olhar o Carnaval é o que os mais velhos chamam de “a verdadeira festa”, é o que deixa saudades em vários ex-foliões que hoje em dia nem pisam nos circuitos oficiais. E se o Carnaval deixasse de ser um negócio bilionário para o enriquecimento de meia dúzia e se tornasse o que é a festa para esses “românticos”: alguns dias para chutar o pau da barraca dos problemas, reunir os amigos, pintar a cara e celebrar a vida? Mas você mesmo dá a resposta, todo mundo quer aparecer na tv. Infelizmente, como eu disse antes, perdemos a inocência e junto com ela, toda a magia pitoresca de Salvador. Quanto ao midiatismo e a guerra por patrocínios e maior tempo de tv, a cidade e seus moradores pagam o preço… Abraços e obrigada pelo comentário conciliador.

  3. Afemaria.
    Me diz, se o povo não vai pro carnaval, o que é aquilo todo dia no campo grande, dançando arrocha? Não é turista, eu acho. E no filhos de Gandhi, aquele cara que, entrevistei esses dias, e trabalha na saúde, se arruma e corre pra avenida? É turista? Veja, é certo mesmo que a maioria dos baianos não sai no carnaval. Mas existe povo na rua sim. Se você for ao campo grande, todo dia tem bloco afro, bloco de pagode, de samba de roda, de partido alto, afoxé…E todo mundo que entrevistei, até os taxistas, contavam que a maior parte dos foliões era do São Caetano, Periperi, Plataforma, Barbalho, Fazenda Grande…É um povo que não sai na Barra. E olha, rodei muito esses dias, trabalhando. E não vi nenhuma briga. E olha que eu tô falando de uma pessoa (eu) que estava na frente do chiclete, saiddy bamba e olodum. Não gosto de carnaval, mas acho que você pintou uma coisa que talvez não seja totalmente verdade.

    • Lamento, Lila, que você não tenha entendido o texto. Diante desse fato, não vou discutir aquilo que você viu nos locais onde esteve trabalhando durante o Carnaval, até porque, também estou trabalhando, aliás trabalho na festa há 15 anos, e vi coisas bem diferentes. Eu não disse que as pessoas não vão para a rua, eu disse que, segundo pesquisas já amplamente divulgadas pela imprensa, mais de 70% dos soteropolitanos não brincam o Carnaval, isso não quer dizer que 100% da população da cidade não brinque na festa. Acontece que a discussão “filosófica” do meu texto não é o número de foliões, mas o significado do Carnaval em uma cidade miserável como a nossa, cheia de problemas sociais graves. Que bom que a turma da periferia, que foi onde eu nasci, está curtindo a festa. Um povo dócil, controlado, que recebe sua dose de circo, não vai se importar de passar o resto do ano sem pão. O que acho engraçadíssimo em relação ao Carnaval de Salvador, uma festa que sempre teve números duvidosos, é que nos 15 anos em que eu trabalho cobrindo a festa, o número de foliões divulgado pelas estatísticas oficiais é sempre 2 milhões. Sua percepção da festa e da cidade, com certeza, é totalmente diferente da minha. No mais, obrigada por ter visitado o blog e deixado sua opinião. Abs!

      • Achei que a comparação “Pão e Circo” é meio óbvia, visto que é usada em tantas ocasiões diferentes que a gente nem consegue contar. A própria tv é integrante do pão e circo. São tantas formas de “pão e circo”..e, sério, eu não neguei a situação da cidade. Mas não vou colocar a mesma discussão, todo ano, como se toda culpa estivesse na festa, com todos os defeitos dela. enfim.

      • As metáforas, e o “pão e circo” é uma metáfora danada de boa desde as antigas arenas do império romano, são óbvias, mas nem por isso deixam de ser verdades. E quanto a discustir, Lila, fiz o meu desabafo sobre a minha percepção da festa, no meu blog pessoal, você não tem de concordar ou discordar de nada do que eu digo, só precisa respeitar que eu penso diferente de você. Abs!

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