Amor (Amour) não é um filme para quem busca romance. Árido, denso, incômodo por tocar em temas tabu da nossa sociedade, a velhice e a proximidade da morte, traz a marca de seu diretor, o austríaco Michael Haneke (Caché, Violência gratuita, A fita branca), com uma condução seca e sem conseções ao pseudolirismo; e uma abordagem pouco explorada desse sentimento, definido aqui enquanto aquele que nasce da convivência, da parceria, da ordem cotidiana quase pragmática das coisas, dos acordos tácitos entre um casal que praticamente lê na alma um do outro aquilo que palavras já não explicam.
Sem arroubos apaixonados, o filme foca no amor baseado no respeito ao outro, à sua dignidade e vontades, naquele que pressupõe sacrifícios, mas se alimenta de uma rotina tão delicada quanto a de preparar o café da manhã ou almoçar ouvindo histórias da infância ou folheando antigos álbuns de fotografia que guardam instantâneos congelados no tempo, fragmentos da maravilha de ter tido uma longa existência.
O filme conta a história de Georges e Anne, um casal de idosos que leva uma vida ativa, voltados um para o outro e para os gostos em comum: a música clássica, o vinho, a ida ao teatro, a companhia plácida e cúmplice após anos e anos de casamento, com seus altos e baixos subentendidos em resquícios de diálogo. Até que Anne tem um derrame e, dignosticada com uma doença degenerativa, definha apesar de todos os cuidados e sacrifícios do marido para deixá-la confortável.
Manter a própria dignidade e a da esposa terminal e garantir a independência do casal transforma a rotina de Georges. Uma cena prosaica é quando ele diz à filha, enquanto a esposa ainda está no hospital, que àquela hora, não fosse a doença de Anne, ele estaria tirando o cochilo da tarde. O que pode parecer egoísmo ou preocupação exagerada com um ato prosaico do cotidiano é justamente onde Haneke, com grande sutileza, expõe a vulnerabilidade da velhice, a necessidade que as pessoas idosas tem de manter suas mínimas rotinas, pois são justamente elas que permitem que se sintam no controle da própria vida e das próprias faculdades e vontades.
A reação quase apática da filha diante da doença da mãe e das decisões do casal de idosos para preservar sua privacidade podem parecer numa análise apressada, fruto do descaso das gerações atuais com a velhice e da incapacidade da sociedade contemporânea em lidar com o avanço da idade e a chegada da doença. Não deixa de ser essa a verdade, mas a mensagem vai muito além…
Aquela filha, incapaz de lidar com o próprio cotidiano estressante, afundada em problemas como a infidelidade do marido, perdida diante do fato da mãe sempre tão independente e dinâmica encontrar-se confinada ao leito, se sente também sobrando em meio a uma sólida relação construída por seus pais. O casal se basta, formam uma unidade onde não há espaço para os conflitos mesquinhos da vida moderna, porque o que move Georges e Anne é muito maior do que decidir se uma determinada quantia em dinheiro deve ser aplicada em ações ou imóveis.
Esse filme foi uma das mais belas e tristes definições que já vi para o clássico “na saúde e na doença…” sacramentado nas cerimônias de casamento e que ultimamente, pouquíssimos casais sabem honrar o real significado da frase.
Vale ainda ressaltar as interpretações magistrais de Emmanuelle Riva (Anne), que aos 85 anos preserva além de uma beleza digna, uma capacidade de atuação comovente; Jean-Louis Trintignant (Georges), igualmente tocante em sua representação; e a lindíssima e talentosa Isabelle Hupert, como a angustiada filha do casal.
Recomendadíssimo para quem entende o amor como um sentimento que está muito acima e é infinitamente mais profundo que um mero “felizes para sempre”.
Doloroso, muito doloroso. E muito triste. Saí refletindo demais sobre a minha velhice, a da minha mãe… Fui contar o filme a ela e me emocionei horrores. É um filme muito real. Sem frescuras, sem retoques, sem mentiras. Cru. Tem uma cena inacreditável no final. Mas realmente, é muito amor.
Sarah Micucci
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