“Com que roupa?”, perguntaria Noel

Dolores, personagem da novela Avenida Brasil: estereótipo da crente cafona

No ônibus, na volta para casa:

A moça desabafa com a amiga ao lado: “Poh, fico revoltada com esse povo evangélico! Só porque eu gosto de roupas assim mais no estilo arrumado, sabe? …”

A amiga ajuda a preencher as reticências: “sei, do tipo clássicas”.

A moça continua o desabafo: “É! Roupas clássicas, assim bem alinhadinhas. Então, só porque eu me visto assim, toda vez que acontece de um evangélico sentar perto de mim no ônibus já começa logo a querer conversar e me chamar de irmã. Poh, fico chateada, porque não tenho nada contra nenhuma religião, mas eu não sou evangélica”.

A amiga acrescenta, a título de consolo ou para mostrar-se bem informada: “É porque esse pessoal evangélico acha que qualquer pessoa que use uma roupa mais curta, tipo short ou saia, ou camiseta nesse calor do cão que faz nessa Bahia, é piriguete. Então, quando eles veem uma mulher com roupa composta já acha logo que é irmã da igreja”.

A moça pergunta: “Mas isso não é preconceito não?”

A amiga responde, mais uma vez mostrando-se informadíssima: “Bom, deve ser né, do mesmo jeito que a gente antes achava logo que qualquer pessoa com aquelas saias até o pé e camisa de manga, com cabelo preso, era crente. Mas veja você, esse pessoal sabe ganhar dinheiro, viu!? Eu recebi um folheto outro dia de uma loja dizendo que era só de roupas para mulheres evangélicas e na propaganda dizia logo assim: ‘roupas recatadas para evangélicas, mas dentro das tendências da moda’.”

A moça acrescenta, mostrando que também é boa de argumento: “Menina, eu já ouvi que evangélico tem até sex shop, que dirá boutique! E pode até ser que outras pessoas que gostem de roupas assim mais chiques comprem na loja. O que eu tô querendo dizer é que não precisa ser evangélica para usar roupas que cobrem mais o corpo e que se uma pessoa usa roupa mais justa ou curta não quer dizer que ela não é legal, como eles falam. Porque eles são bem preconceituosos, você sabe, chamam as outras pessoas que não são evangélicos de ‘gente do mundo’, como se do mundo não fossem todas as pessoas. Tooooodos (ela capricha nos ooos) somos do mundo, ninguém mora no espaço!”

Modelo de vestido exibido em um site de moda evangélica que catei no Google para ilustrar a crônica. O site usa um slogan bem parecido com o dito pela garota no ônibus: “Moda recatada e fina para mulheres evangélicas que são fashionistas”. Engraçado é que eu sou do time das sem-religião e usaria tranquilamente o modelito da foto, em estilo ladylike, com uma pegada vintage que sempre gostei. Não consigo ver uma roupa assim como exclusiva “para mulheres evangélicas”. Para mim é uma roupa bem arrumada, para qualquer pessoa que curte um estilo mais clássico de se vestir, o que não impede que em outro momento, o decote desça mais um pouco ou o comprimento da saia suba. Me identifiquei com o desabafo da moça no ônibus, embora a crônica não seja autobiográfica

Uma senhora, que viaja sentada no banco de trás, ao meu lado, se mete no papo:

“Eu acho que isso da loja de sexo é só para ganhar mais dinheiro, como eles fazem com o dízimo. E que esse negócio de roupa separada para evangélica e para não evangélica é balela. Tem muita evangélica por aí que é muito mais sem vergonha coberta do que as não evangélicas descobertas!”

Não resisto e me meto também. Pergunto à senhora ao meu lado:

“E o que a senhora acha disso? Dos dois lados julgarem o caráter das pessoas pela roupa que elas vestem?”

A senhora ao meu lado toma um ar, e responde para mim e para as duas amigas no banco da frente:

“Eu acho, minhas filhinhas, que julgar pela aparência é errado e só gente ignorante é que faz isso. Mas acho também que no mundo cabem todos os tipos de gostos, e cabe gente que se cobre e gente que se mostra. E religião, eu não discuto, porque cada um tem a sua, ou não tem nenhuma, e isso é com a consciência de cada um!”

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4 pensamentos sobre ““Com que roupa?”, perguntaria Noel

  1. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkk Adorei! Esses papos de buzu são ótimos e, apesar de muita gente não dar atenção, servem pra gente pensar tanta coisa. Bj! :)

    • Pois é Nayara, tem um escritor baiano, o Mayrant Gallo, que me disse uma vez numa entrevista que os bate-papos de rua serviam muito de inspiração para seus contos sobre o cotidiano de Salvador. Beijão

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