Resenha: O diário de Gian Burrasca (Vamba)

Uma ode à sinceridade infantil e a liberdade de expressão

Vamba, que também era ilustrador, fez os desenhos do diário

Gianninno, apelidado Gian Burrasca (tempestade) por ser considerado muito travesso, é apenas uma criança típica, mas extremamente inteligente e precoce; capaz de surpreender os adultos em suas contradições. “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço” não é uma máxima convincente para o pequeno Gian. Nas páginas de seu diário, ele questiona as injustiças cometidas por pais muito severos com seus filhos, mas que são pessoas moralmente frágeis a ponto de colocar em xeque a credibilidade da criação dos pequenos.

Os relatos de O diário de Gian Burrasca, do humorista italiano Vamba (que nasceu Luigi Bertelli), são de um tempo em que castigos corporais e palavras duras, desqualificantes, faziam parte da criação dos filhos. Um tempo em que os pais não conquistavam o respeito pela coerência de suas ações e palavras, mas apenas por incutir temor nas crianças. O livro, no entanto, é mais que isso. Através do personagem Gian Burrasca, Vamba mostra a hipocrisia da sociedade italiana do começo do século XX (a obra é de 1906/1907) e embora pareça antiga, a história é atemporal. A crítica social, política e de costumes contida no diário vale tanto para a Itália quanto para qualquer outro país nos dias de hoje.

Gianninno, na tentativa de ser um filho modelo e comportado, coloca em prática os ensinamentos teóricos que recebe da família, mas sempre esbarra na prática contrária. Se os parentes mandam que ele respeite os mais velhos, por exemplo, agem de forma diferente das próprias palavras, colocando apelidos maldosos nos tios ricos e vivendo na expectativa de que estes morram para legar-lhes uma gorda herança.

Na cabeça do menino, a contradição, justificada pelos adultos como parte do “jogo social”, provoca revolta e insurreição. Giannino, sentindo-se injustiçado por fazer o que dizem ser certo, mas ser repreendido devido à maleabilidade da moral e ética adulta, se revolta e acaba levando outras crianças para a sua “revolução”.

Gian Burrasca e sua tentativa de libertar um canarinho. Bela metáfora para a vida sufocante das crianças de seu tempo

O problema é que só o leitor percebe as jogadas de Gian para revelar aos adultos as próprias falsidades. Imersos no lodo da sociedade, os mais velhos estão cegos e surdos a qualquer tentativa do garoto de dar-lhes uma lição. De certa forma, a mensagem de Vamba parece dizer que em meio à forte pressão do grupo para a manutenção das coisas como estão, as vozes dissidentes serão sempre consideradas rebeldes e marginais, mesmo que estejam certas.

O menino, depois de desventuras e aventuras e de ser levado daqui para ali, para a casa de parentes que tentam “corrigi-lo”, é mandado para o colégio interno como um último recurso de uma família que não pretende assumir a responsabilidade pela sua formação, revendo inclusive os próprios erros (a ideia dos adultos é de que eles não erram); mas apenas ditar-lhe normas de comportamento que quando ele for adulto poderá quebrar ou remodelar ao sabor das circunstâncias, mantendo sempre a “ordem natural das coisas”.

No colégio, Gian descobre que as mesmas injustiças domésticas existem em grau máximo e passa a fazer parte de uma sociedade secreta que tem por finalidade revelar os maus-tratos sofridos pelos alunos e também punir os diretores que não só praticam as barbaridades, como são coniventes com a perversidade de outros funcionários.

Sem voz em uma sociedade que não dá a menor credibilidade às crianças, o menino e seus companheiros passam a usar táticas de guerrilha para sobreviver em meio a uma ditadura de costumes imposta por pais, professores e qualquer outro adulto.

À primeira vista, O diário de Gian Burrasca, pode parecer só uma saudosa coletânea de traquinagens infantis. Mas através das memórias de seu protagonista, o autor homenageia não somente a infância livre e criativa dos tempos de outrora, mas acima de tudo, a capacidade das crianças de serem sinceras e dizerem sempre as “verdades inconvenientes”. Faz ainda uma bela apologia à liberdade de expressão em uma sociedade que pratica a patrulha ideológica e a repressão dos talentos individuais, em qualquer tempo.

Ficha Técnica:

O diário de Gian Burrasca

Autor: Vamba (Luigi Bertelli)

Tradução: Reginaldo Francisco

Editora Autêntica

248 páginas

Preço: R$ 34,00

*Também publicado em Luz sobre a escrivaninha.

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