A fala de uma criança pela voz de um adulto
O italiano Edmondo de Amicis bem que tenta fazer o leitor acreditar que quem narra Cuore é um menino de nove anos, mas é a sua voz de um homem feito e cheio de boas intenções, mas marcado pelos preconceitos de seu tempo, que é ouvida. Escrito em forma de diário, onde um garoto italiano de meados do século XIX narra o dia a dia em uma escola pública onde estudam filhos de pobres e ricos, o livro é considerado um clássico, mas não é dos tais que podem ser lidos a qualquer tempo como se falasse dos dias de hoje. Cuore é datado e sua leitura se justifica mais como curiosidade antropológica.
O tom lacrimoso da obra e a defesa ferrenha de um patriotismo até certo ponto cego, comprometem a fruição do livro por um leitor contemporâneo e mais crítico, embora a edição em português (da Autêntica) prime pelo criterioso trabalho de contextualização através de uma boa introdução da editora e de notas de rodapé. Ainda assim, boa parte dos conselhos de Amicis, como bem definiu um dos personagens de Umberto Eco – Gragnola, do livro A misteriosa chama da rainha Loana, soa fascista.
Há no livro um excesso de caridade cristã, um engrandecimento da pátria e da figura dos governantes (no caso da obra, do rei), uma exortação à moral e aos bons costumes que flertam perigosamente com ideais totalitários. É compreensível que na Itália recém-unificada do período, as obras infantis buscassem inspirar nos pequenos leitores a ideia de nação, respeito e união entre as diversas províncias, de culturas e dialetos diversos, que formavam o país. Mas ainda assim, há nas entrelinhas de Cuore um certo fanatismo.
A forma como os pais do protagonista lidam com ele também é impensável nos dias de hoje, visto que os métodos de educação, ao menos teoricamente, evoluíram da velha chantagem emocional com objetivo de deixar o outro culpado (“assim você mata a sua mãe de desgosto”) para uma tentativa de se estabelecer um diálogo e uma compreensão melhor entre pais e filhos. Mas Cuore é um livro que divide as crianças em anjos e casos perdidos. Sendo que os últimos são tratados sem a menor condescendência ou sequer uma tentativa de reabilitação.
A fala de Enrico, o personagem central e narrador do diário, é enfadonha, artificial e adultizada em excesso, o que se justifica pela própria semi-existência de um conceito de infância na época em que a obra foi escrita. Amicis não parece compreender as crianças e o universo infantil, daí não ser capaz de falar como uma delas.
Em resumo, Enrico é um garoto bem-nascido, filho de um engenheiro rico, e dotado daquela superioridade que se traveste de piedade para com os desafortunados. Piedade essa que estende uma moeda ou um pão ao faminto, mas que não encoraja mudanças no status social, por exemplo.
Os amigos pobres de Enrico são sempre tratados como coitados e qualquer grosseria feita pelo menino para um deles, em um caso típico da idade e das rixas infantis, é punida pelo pai do garoto com um sermão pio que segue caminhos tortuosos. Enrico, diz seu pai, precisa manter sua posição de superioridade, servindo aos amiguinhos pobres como inspiração em termos de cavalheirismo, embora por sua condição de nascimento eles nunca cheguem de fato a cavalheiros.
As intervenções desse pai de fina estirpe no diário do filho, através de longas cartas e inserções no caderno onde o menino registra seu cotidiano escolar e desabafa suas incertezas, mostram a preocupação de um pai em ensinar ao filho como demarcar seu status social desde muito cedo, mas a fazer isso de forma gentil, piedosa e até certo ponto hipócrita. O mundo é dividido entre nós, os bem-nascidos, e eles, os necessitados. E só.
No meio dos dois grupos, demarcando a fronteira, um engrandecimento e louvação excessiva ao exército e à figura do soldado como guardião do status quo da sociedade. Fascista, com certeza. E embora o fascismo ainda não existisse nos tempo de Amicis, de algum lugar – ou de vários lugares – os criadores do partido tiraram os fundamentos de sua ideologia.
O incentivo ao respeito ao outro, que poderia ser o grande discurso do livro, apenas se insinua, mas sempre com a mancha da divisão da sociedade por classes, o que no fim das contas compromete tanto a leitura quanto a moral da história.
De certa forma, Cuore é um incentivo não à compreensão, mas à tolerância e como bem disse José Saramago certa vez, o ato de tolerar o outro nunca pode ser confundido com o ato de compreender. Quando se compreende é porque houve a capacidade de ver o mundo e senti-lo na carne do outro; mas quando se tolera, apenas se reforça uma tendência à magnanimidade: “vá lá que eu sou tolerante com você, porque sou superior”.
Uma mensagem nada edificante, não acham?
Ficha Técnica
Autor: Edmondo de Amicis
Tradução: Maria Valéria Rezende
Ilustrações: Daniel Hazan
272 páginas / R$ 39,90
*Resenha também publicada em Luz sobre a escrivaninha.