Resenha: Romance d´A Pedra do Reino

Um romance para decifradores

Romance d´A Pedra do Reino não é leitura para ser feita às carreiras. É livro de decifrar, de palmilhar página a página, em compasso de quem anda pelos descaminhos do sertão sob um sol abrasador. O estilo da obra de Ariano Suassuna é difícil de definir. Seria cordel, novela de cavalaria, autobiografia, exorcismo de um trauma passado, história de amor, de ódio e de sangue, epopeia em prosa? O próprio personagem principal, Dom Pedro Dinis Quaderna, nos dá a pista: é um castelo de sonho, “a obra máxima da raça brasileira”. Bem disse Raquel de Queiroz no prefácio, que ler livro escrito por um erudito é o diabo. Ou você eleva o pensamento ao nível do visionário e delirante Quaderna (e da genialidade de seu autor), ou deixará a leitura inacabada. É de delírios, miragens de deserto, de legenda e sonho que trata essa obra. Da grandeza do homem mesmo diante da mesquinharia da vida.

A idade média nunca se acabou no sertão do Brasil. Em pleno século XIX do fim da monarquia, cangaceiros eram príncipes vingadores, beatos transmutavam-se em sábios merlins, prostitutas em misteriosas feiticeiras, sinhazinhas eram as damas de peitos macios e olhares sonhosos. E os mancebos, heróis trágicos. No começo da primeira república, alvorecer do século XX, a têmpera do sertanejo era forjada nesse fogo passional. Romance d´A Pedra do Reino é uma obra totalmente passional, dotada de uma paixão tão fanática, iluminada e beatífica quanto a do “santo” Antonio Conselheiro de Canudos.

Um rico mosaico de personagens desfila no grande palco que é o Romance d´A Pedra do Reino. Personagens inspirados na cultura sertaneja e no gosto do autor pelas “demandas novelosas, embandeiradas e epopeicas” dos romances de cavalaria medievais. E alguém conseguirá pensar em Quaderna sem enxergar nele a ingenuidade de Quixote lutando contra moinhos de vento? Mas, Quaderna, um personagem complexo, que suscita amor, ódio, riso fácil, asco e piedade, é também moldado à semelhança daquele diabo sertanejo e treteiro, filho (ou seria o pai?) de Pedro Malazartes.

O livro não é linear, é uma mistura de muitas histórias dentro de uma única história, como aquelas bonecas russas, as matrioskas, em que ao abrir a maiorzinha, aparece outra e mais outra… Quaderna traz no sangue a tragédia de sua família, com tudo o que ela significou para transformá-lo no ardiloso arremedo de cavaleiro de triste figura que ele é. Suassuna, por sua vez, é um escritor que traz no sangue a tragédia do assassinato do pai, por causas políticas. Nesse sentido, o livro tem seus traços autobiográficos, mas é muita pobreza interpretativa reduzi-lo apenas a uma catarse individual. A Pedra do Reino vai além.

A leitura, árdua em alguns trechos, revela diversos momentos de grande prazer. O burlesco, o ridículo, o mal-ajambrado dão a tônica de uma narrativa febril, pontuada de picardia e de citações poéticas clássicas e populares, de descrições detalhadas da heráldica de bandeiras e brasões que, no entanto, é visão de um único homem delirante. Quaderna conta sua história, do seu jeito, para as belas damas de peito macio e para os nobres senhores, ao mesmo tempo em que na segunda metade da obra, responde a um longo interrogatório em um inquérito policial. Ele parece acreditar piamente nas motivações nobres de cada um dos seus atos e usando uma lábia fina (de diabo sertanejo) tenta nos convencer e ganhar a simpatia da audiência para a sua causa.

Quaderna, o charadista – A história, totalmente aberta e enigmática não traz a clássica resposta para os ”whodunit” da vida. A charada central permanece indecifrada: Quem assassinou o velho rei degolado, tio de Quaderna? O rapaz-do-cavalo branco era mesmo o jovem herdeiro do coronel morto, ou era um líder sertanejo querendo reeditar uma versão armorial da Coluna Prestes? Os fatos são passados ao leitor através do ponto de vista de Quaderna, um homem supostamente louco, com toda certeza de personalidade exótica e valores morais flexíveis (para não dizer amoral), mas que em determinados momentos, revela aquela lucidez involuntária dos inocentes. A maldade de Quaderna, se é que existe, não é maquiavélica e isso fica muito claro nos seus embates com o “Fucinho de Porco”, o corregedor nomeado para descobrir os assassinos do rico coronel e achar possíveis focos de uma nova Revolução Comunista em Taperoá, no sertão da Paraíba.

O leitor, e o corregedor, desconfiam que Quaderna possa ser o assassino desse tio que ele parecia idolatrar. Nós, leitores, ao menos, acreditamos que a motivação do suposto crime, se é que foi mesmo Quaderna, foi menos pelo interesse na herança (no tesouro enterrado numa furna do sertão) do que para ter com a morte tão sanguinolenta e misteriosa, o motivo, “o centro do enigma da epopeia” que o esdrúxulo Quixote de Suassuna quer tanto escrever.

Quaderna, megalomaníaco, age em nome do desejo ardente de ser gênio da raça brasileira, quiçá gênio da humanidade, está completamente tomado e alucinado pela lenda que criou para si mesmo e para sua malfadada família. Até a cegueira muito peculiar do personagem, que almeja ser maior que Homero, não deixa de ser uma metáfora precisa para descrever alguém que abriu mão da vida ordinária e calcinada no sol e nas pedras da caatinga, e transportou-se para dentro de um sonho acordado. Quaderna só vê a miragem e para ele, a miragem é a única realidade que consegue discernir.

Colcha de tacos – O cenário político do Brasil das primeiras três décadas da república, os fatos históricos que na leitura de Quaderna e de seus seguidores sempre descambam para a legenda e o sonho, as crenças e crendices do sertanejo, com toda a sua propensão ao fanatismo, as guerras de sangue entre as famílias poderosas, a tênue linha fina onde se equilibram os míticos cangaceiros, esses heróis-bandidos ou bandidos-heróicos, tornam A Pedra do Reino à primeira vista, uma colcha de retalhos mal remendada.

Mas, quem já viu uma colcha de tacos (aquela feita com quadrados e losangos de tecido colorido) sabe que à primeira olhada, a colcha se parece com uma maçaroca confusa de panos costurados aleatoriamente. Mas, ao acostumar os olhos, percebe-se a ordem precisa e o padrão de encaixe dos quadrados e losangos, que formam um rico mural “amosaicado”. A colcha, tão comum de encontrar nas casas pobres do sertão, é uma unidade formada por muitas outras, uma realidade compacta criada a partir dos fragmentos (dos pontos de vistas) de realidades diversas.

Assim é A Pedra do Reino, muitos livros dentro de um, aparentemente sem conexão, mas todos interligados, encaixados com precisão, unidos com a cola ancestral da mistura dos povos que formaram o Brasil no seu âmago. Sem deixar de ser um elaborado entretenimento e uma preciosa obra de arte literária, é ainda uma aula de sociologia e de história sobre o caldo “flamengo-ibérico-mouro-negro-tapuia” da nossa cultura brasileira, como bem diriam os dois mentores intelectuais de Quaderna, os caricatos Clemente Hará Ravasco, advogado negro – e comunista – com sobrenome espanhol; e Samuel Wan´Ernes, sinhozinho falido dos engenhos de Pernambuco, que se orgulha do sobrenome holandês legado pelos conquistadores chefiados por Maurício de Nassau.

Abrir a mente para as conexões invisíveis presentes nessa ancestralidade de tantos povos misturados num único povo é essencial na leitura de A Pedra do Reino. E também, abrir a mente para aceitar que um romance pode abrigar na sua essência muitas outras linguagens como a poesia, a pintura, o teatro, a musicalidade sertaneja, o compasso das ladainhas e as invocações apocalípticas dos adivinhos.

A Pedra do Reino é um exagero de livro, não tanto pelo tamanho de suas mais de 700 páginas, mas porque ele ambiciona abranger a vida, essa fera tão terrível quanto a “onça do divino” e tão doce (sem deixar de travar na língua) feito uma cajarana madura.

Ficha Técnica:

Romance d´A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta

Autor: Ariano Suassuna

Editora José Olympio

756 páginas / R$ 69,00 no site da Livraria Cultura

Advertisement

14 pensamentos sobre “Resenha: Romance d´A Pedra do Reino

  1. Pingback: Autopromoção: O dia em que a internet descobriu O menino que não gostava de dormir – Mar de Histórias

  2. Que linda resenha, parabéns! O oficial de justiça Severino Brejeiro é o meu avô Severino Luiz Rafael, é emocionante ver o nome do meu avô eternizado na história. Saber que mesmo com o passar do tempo, os seus passos e palavras ficaram e ficarão enraizados no solo de Taperoá, Paraíba, Nordeste. À família Rafael a minha estima e consideração!

  3. Pingback: Nova Fronteira publicará obras inéditas de Ariano Suassuna | Mar de Histórias

  4. Pingback: ariano suassuna, 1927 – 2014. | dia a dia, bit a bit | discussões [sobre os universos] digitais, por Silvio Meira

  5. Nossa, Andreia, essa resenha ficou muito boa! Confesso que abandonei o livro na adolescência, mas depois de ler sua opinião, abriu minha cabeça. Vou tentar ler de novo :)

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s